20 de agosto de 2011 | N° 16798
DAVID COIMBRA
Ganhando no grito
Temos uma roda de amigos que partilha chopes cremosos às sextas-feiras. É roda mesmo, porque sempre tentamos nos acomodar em mesas redondas, onde todos podem conversar olhando no olho. Nessa última sexta, nos acomodamos no nosso canto no fundo do Schulinhas e eu pedi um filé simples com arroz.
Se você pretende testar a destreza de uma cozinha, peça filé simples com arroz. Não peça à milanesa nem à parmegiana, que esses frufrus só servem para camuflar o filé. Filé simples, despojado de aparatos, nu como uma Ellen Roche, dependente apenas da habilidade do cozinheiro com as temperaturas e os temperos, esse é o filé do qual se sente o real sabor da carne.
Bem. O meu filé, ao aterrissar na mesa, deixou-me comovido quase às lágrimas. Veio do tamanho de uma bola de futsal, crocante por fora, tenro por dentro. Macio como macias devem ser as pernas de Megan. E saboroso, tão saboroso... Foi enquanto o trinchava e suspirava que alguém, acho que o Admar ou o Cabeça, falou nos gurcas.
Por que alguém haveria de citar os gurcas naquele momento inefável? Não lembro muito bem, talvez devido aos chopes dourados e gelados que ingeri depois do filé. Sei que o assunto roçava a Guerra das Malvinas e o Admar lembrou que os hermanos corriam de pavor quando ouviam o grito de guerra dos gurcas:
– Aiô, gurcali!!!
Algo que tinha mais ou menos o mesmo significado do que gritava o Cabo Rústi para o seu bravo pastor alemão:
– Aiô, Rintim!!!
É que a fama dos gurcas chegou às Malvinas antes deles. Em 1982, todos os argentinos sabiam que aqueles homens pequenos, morenos e graves eram guerreiros terríveis e temíveis. Não por acaso. Os gurcas descendem dos mais terríveis e temíveis guerreiros da História humana: os mongóis.
Encarapitados no Nepal, no alto do Himalaia, os gurcas vivem para lutar. Sua ética guerreira se assemelha à dos hoplitas espartanos ou à dos samurais japoneses. Para eles, o que importa é a honra em combate, jamais a sobrevivência. Um gurca prefere morrer a render-se. Os britânicos os conheceram na guerra do Nepal, nos tempos da Rainha Victoria. Ficaram admirados com a coragem dos gurcas, assim como os gurcas ficaram admirados com a disciplina inglesa. Um não podendo bater o outro, uniram-se.
Os gurcas foram incorporados ao exército britânico e dele fazem parte ainda hoje. São usados principalmente como tropa de assalto. Seu símbolo é o kukri, um punhal curvo que herdaram de ninguém menos do Alexandre, o Grande. O kukri é a extensão do braço de um gurca. Com essa adaga mortífera, eles degolam o inimigo de um só golpe, rasgando-lhe a jugular.
Tudo isso sabiam os soldados argentinos quando um pelotão gurca chegou às Malvinas para enfrentá-los, e era por isso que os argentinos fugiam como coelhos ao ouvir o selvagem grito de guerra dos gurcas antes do ataque.
Que não se critique os argentinos. Eles não foram os primeiros a correr dos urros de morte de um inimigo. Até os legionários romanos, tão bravos e disciplinados, que com bravura e disciplina conquistaram o mundo, até eles correram de medo quando ouviram pela primeira vez o brado dos germanos numa floresta da Gália antiga. Isso antes de o general Julio Cesar ir para lá, ver e vencer, é claro.
Você já viu a dança haka dos All Blacks, a seleção de rúgbi neozelandesa? Procure no YouTube. Antes dos jogos, os All Blacks fazem uma dança de guerra maori, gritam e afrontam os adversários olhando-os nos olhos com fúria. Não por acaso, são a melhor seleção de rúgbi do planeta. Também Mike Tyson, depois de saltar as cordas do ringue, olhava nos olhos do adversário, olhava duro, olhava sem piscar, e já naquele olhar começava a nocauteá-lo.
A torcida do Grêmio já pôs medo nos adversários que pisavam na grama do Olímpico. Na decisão do Brasileiro de 96, os jogadores da Portuguesa contaram que, antes do jogo, dentro do vestiário, ouviam o rugido da torcida e tremiam. E agora, não muito tempo atrás, o Grêmio foi imbatível em seu estádio. Passou dois anos sem perder no Olímpico. Por quê? Por causa do urro da torcida. Agora não mais. Por quê? Não foi a torcida que mudou.
Pois até os All Blacks perderam para os sul-africanos, até os germanos foram conquistados pelos romanos, até os gurcas foram incorporados pelos ingleses, qualquer um pode ser vencido, a despeito de seus gritos de guerra ameaçadores. Porque não adianta berrar e esbravejar, se não se pode cumprir a ameaça. Um exército só é terrível e temível se seus guerreiros sabem lutar.
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