domingo, 21 de agosto de 2011


FERREIRA GULLAR

Em time que está ganhando...

E logo me ocorreu a hipótese de que se trata de pôr em prática o princípio abstrato de liberdade...

Li com espanto, algumas semanas atrás, que o prefeito do Rio, Eduardo Paes, pretendia retirar as grades que cercam algumas praças da cidade. Mas por que isso -me perguntei- se essas praças se tornaram, depois que puseram as grades, locais tranquilos e limpos?

E logo me ocorreu a hipótese de que se trata de pôr em prática o princípio abstrato de liberdade... Essa é uma expressão que cunhei para definir uma nova mania que se instalou na cabeça de alguns e que pode ser definida como a eliminação total de qualquer medida restritiva a qualquer coisa.

Voltamos aos anos 70, quando se inventou o lema "é proibido proibir". Menos explicitamente, adota-se a mesma atitude em face de tudo o que pareça cerceamento ou repressão. Assim, há quem se oponha a que a prefeitura do Rio recolha meninos que fumam crack na rua.

O argumento é que são levados, contra sua vontade, para lugares onde não há assistência médica de qualidade, nem terapeuta, nem... Conclusão: melhor mesmo é deixá-los na rua, gozando de plena liberdade. Imagino que alguém meteu na cabeça do prefeito que praças cercadas são antidemocráticas...

Sabem por que penso isso? Porque, décadas atrás, quando o prefeito de então decidiu cercar as praças com grades, logo surgiram os defensores do princípio abstrato da liberdade para alegar que aquilo era contra o direito de ir e vir e, logo, atentava contra a liberdade dos cidadãos.

Agora vejam vocês, eu que moro aqui em Copacabana, perto da praça Serzedelo Corrêa, fiquei estarrecido: a praça havia se tornado um valhacouto de vagabundos, mendigos, drogados e assaltantes.

Ninguém usava a praça para nada. Levar crianças para brincar ali, nem pensar. Só os desavisados se atreviam a cruzar a praça certas horas, particularmente depois que anoitecia. O mesmo se podia dizer da praça do Leme, que fica algumas quadras adiante.

Apesar dos protestos, o prefeito não voltou atrás e mandou cercar as praças com grades, com amplos portões que permitem o livre trânsito das pessoas. Graças a isso, elas voltaram a ser áreas de lazer, hoje frequentadas particularmente por crianças e idosos.

A praça do Leme, por onde passo com frequência, tornou-se um lugar tranquilo, onde o pessoal se reúne para conversar, jogar dama e xadrez, enquanto as crianças correm e brincam alegremente.

A praça Serzedelo, a mesma coisa. Já cansei de cruzá-la à noite sem nenhum temor. Nem se tem notícia, em todos estes anos, de qualquer assalto ocorrido ali. Então, cabe perguntar: por que acabar com o que deu certo e voltar à situação anterior, que deu errado?

Um dos argumentos usados para retirar as grades das praças é que isso já tinha sido feito na praça Tiradentes, com ótimo resultado. Li essa notícia e não me convenci, já que ando pela cidade e vejo mendigos espalhados por todo canto, deitados nas calçadas em ruas de menor movimento.

Aqui, na minha rua mesmo, nos fins de semana, quando o comércio está fechado, várias calçadas são ocupadas por pessoas que ali dormem em cima de plásticos ou colchões velhos, que carregam consigo.

Só não se instalam definitivamente ali porque, ao recomeçar a semana, as lojas abrem e eles são obrigados a sair. Mas, nas praças, não há lojas, a área é ampla, o policiamento precário, e por isso eles ali se instalam definitivamente. E é o que já está acontecendo na praça Tiradentes: ao contrário do que afirmavam os defensores do princípio abstrato da liberdade, os mendigos tomaram conta da praça, poucos dias depois de retiradas as grades.

Sei que o prefeito Eduardo Paes tem espírito público, trabalha para melhorar as condições de vida na cidade. Quando escrevi aqui a respeito de uma rua no bairro de Anchieta, zona oeste do Rio, que se tornara um buraco só, ele me telefonou e se dispôs a mandar consertá-la.

Isso faz talvez um ano, mas a obra foi feita e a rua está praticamente pronta, asfaltada, com as instalações de água e esgoto recuperadas.

É verdade que um vereador cara de pau -que nestes 20 anos nem sequer reparara na buraqueira da rua- já estendeu ali uma faixa se dizendo autor do milagre. Mas isso pouco importa, há gente para tudo, particularmente no campo da política. Importa é que se faça o que deve ser feito, visando o bem-estar e a segurança das pessoas.

GILBERTO DIMENSTEIN

Pobreza emburrece?

Einstein nascido miserável, sem apoio para aprender, até seria inteligente, mas dificilmente um gênio

PARA QUEM estuda o cérebro, a resposta da pergunta que está no título é sim: a pobreza emburrece.

Apenas metade da inteligência de um indivíduo pode ser explicada pela herança genética, segundo estudo divulgado neste mês pela Universidade de Edimburgo, que envolveu cientistas de diversos países. O restante da composição do QI vem do ambiente em que se vive e dos estímulos educacionais recebidos desde o berço.

Simplificando: um Einstein nascido na miséria, sem apoio para aprender, até seria inteligente, mas dificilmente um gênio. Alguém com potencial de ter uma alta inteligência torna-se apenas mediano. É como se um músculo deixasse de ser desenvolvido.

Chegou-se a essa conclusão depois de testes laboratoriais com 3.118 pessoas espalhadas pelo mundo. Imaginava-se que as forças externas seriam bem menores na formação do QI. Tradução: inteligência é uma habilidade que, em boa parte, se aprende, depende da família e das oportunidades na cidade.

É um ângulo interessante para ver a parceria, anunciada na quinta-feira, entre a presidente Dilma Rousseff e os governadores da região Sudeste de unificação de seus programas de complementação de renda para combater a pobreza, batizado de Brasil sem Miséria.

Menos miséria acarreta mais inteligência?

A pesquisa dos neurocientistas ajudou-me a ver por outro ângulo um dos projetos mais emocionantes que conheço (Ismart) no Brasil: jovens de baixa renda, a maioria deles vindos de comunidades pobres, são escolhidos e preparados para estudar em escolas de elite.

Quase todos eles costumam entusiasmar seus professores porque, apesar da adversidade extrema (muitos passam parte do dia no trajeto de ônibus até a escola), conseguem recuperar a cada ano o tempo perdido. Logo estão no mesmo nível de aprendizagem de seus colegas mais abastados e até os superam, entrando nas melhores faculdades.

Conheci vários desses jovens e tendia a atribuir sua performance à garra, a uma inteligência acima do normal, tudo isso, é claro, favorecido por escolas de qualidade.
O que impressiona a todos é a rapidez da evolução. O que aquela pesquisa da Universidade de Edimburgo traz é a suspeita de que, com tantos estímulos, desafios e apoio, a taxa de QI possa ter sofrido um upgrade -afinal, nessa fase o cérebro ainda está em formação.
É, por enquanto, apenas uma especulação.

O que não é uma especulação é o caminho inverso, mostrando a relação entre pobreza e aprendizagem. Com apoio do Unicef, o Cenpec analisou, desde o ano passado, 61 escolas de de São Miguel Paulista, região da periferia da cidade de São Paulo. Já sabemos que, em geral, quanto mais pobre um bairro, pior tende a ser a nota dos alunos.

Mas essa investigação foi mais longe. Analisou as escolas de uma mesma região, comparando alunos com semelhante posição socioeconômica. Detectou-se uma expressiva diferença segundo as peculiaridades de cada território, especialmente a oferta de serviços públicos em cada um deles.

Nos lugares com menos serviços públicos, as demandas sociais tendem a sobrecarregar mais as escolas e, com isso, afastam ainda mais os professores e as famílias que têm maior repertório cultural. Nesses locais, há menos oferta de creche e pré-escola, retardando o processo de aprendizagem.

Esses programas da renda mínima unificados (acertadamente) por Dilma e os governadores têm como contrapartida a permanência dos alunos nas escolas. Mas a subida da renda, a julgar pelas descobertas da pesquisa do Cenpec, será limitada à aprendizagem dos alunos se não houver um investimento e articulação nos territórios.

Nem será justo que se avaliem essas escolas com padrões semelhantes aos das demais, já que os professores, mesmo os mais capacitados, terão uma margem de manobra limitada.

Programas como o Bolsa Família são um bom exemplo de política para a redução da miséria. E, por isso, têm um efeito eleitoral, mas terão um baixo impacto educacional caso não se perceba o território como uma extensão da sala de aula.

Não pensar na educação como uma linha que passa pela família, pela escola e pela comunidade é falta de inteligência pública.

PS- Por falar em políticas públicas e territórios, será lançado no começo de setembro um aplicativo para celular por meio do qual as pessoas poderão, em tempo real, relatar suas impressões sobre a cidade. Gera-se, no final, um mapa das percepções de toda a cidade e seus problemas rua por rua.

Desenvolvido pelo Movimento Mais Feliz, comandado pelo publicitário Mauro Montorin, o projeto deve ser encampado pelo Facebook para ter amplitude internacional.

gdimen@uol.com.br

DANUZA LEÃO

Acelera, Dilma

Em sua nova fase, Dilma deveria apontar seu dedo ameaçador aos políticos que só pensam em emenda

A PRESIDENTE está surpreendendo. Sua fama era de competente e durona, mas de não saber fazer política, ser incapaz de negociar.
Pois a "saída" do ministro da Agricultura foi uma surpresa.

Ela conseguiu o que queria -se livrar de Wagner Rossi-, na moral, sem precisar bater de frente com o PMDB. Palmas para ela, e vexame para sua "base de apoio"-aliás, apoio a eles mesmos-, cujos deputados sumiram quando souberam do desfecho.

Em seu discurso de posse, a presidente estendeu a mão à oposição, coisa que há oito anos não acontecia; agora, dez senadores (só dez!) -todos de reputação inatacável- fizeram um gesto em direção a Dilma, oferecendo a ela apoio, para que a faxina continue.

Aceite, presidente; é uma boa hora para fazer novas amizades e se firmar como grande brasileira.

Nos encontros que tem tido com Lula, em diversas bases aéreas do país, imagino os conselhos que Dilma recebe. A governabilidade acima de tudo etc. etc., e 2014, claro.

A presidente parece obediente, mas sabe muitíssimo bem o que é certo e o que é errado, seu mestre foi Brizola; será que algum dia sonhou que teria que se reunir com Michel Temer e José Sarney, para "sentir" se podia ou não demitir um ministro apadrinhado por eles?

Afinal, não foi para isso que Dilma abriu mão de sua juventude, que foi presa e torturada.

Seu dever de lealdade é, em primeiro lugar, para com os que a elegeram, e só depois a Lula, isso se achar que deve; afinal, a presidente é ela, eta herança mais maldita.

Ela não precisou dar um murro na mesa para se livrar dos dois ministros que já se foram; ainda faltam alguns, é verdade, mas ela é mineira, tem paciência para esperar a hora certa. Caindo o terceiro ministro desta leva, que está quase, Dilma podia aproveitar o embalo e diminuir o número de ministérios, começando pelo da Pesca, que não dá para entender.

Com os acontecimentos da semana, a próxima pesquisa deverá ser mais favorável, e em sua nova fase ela deveria apontar aquele seu dedo ameaçador diretamente aos políticos que só pensam nas emendas, as famosas emendas.

Depois do deslumbramento inicial, aliás compreensível, fantasio que às vezes Dilma pense "por que eu fui me meter nessa?"

Cercada pela sua falta de experiência política, e vigiada de perto por Gilberto Carvalho, que dá os recados de Lula, sua vida não deve ser fácil.

Aliás, o que teria feito Lula com essa crise nos ministérios? Faria um discurso bem popular, esbravejando, como sempre, e diria que a culpa era toda da imprensa. Aliás, é bom lembrar que, se não fosse a imprensa, Palocci ainda seria o ministro mais poderoso do governo.

Estou começando a confiar mais em Dilma, e adoraria poder elogiar coisas que ela faz mais vezes, muitas vezes. Mas vamos combinar: cada vez que ela fala, é um desastre; decididamente, nossa presidente não nasceu com o dom da palavra.

E nem precisa; basta fazer o que deve, o que é certo.

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Tucanos caem como patinhos

BRASÍLIA - As fotos de Dilma com Fernando Henrique, Geraldo Alckmin e Antonio Anastasia dizem muito -sobretudo da estratégia dilmista de se descolar de escândalos e escandalosos e se aproximar da oposição e de independentes.

Dilma, que não é PT na origem e na alma, tem problemas na base aliada, com o malcriado PR articulando operação-padrão com PTB, PP, PSC e setores do PMDB. Mas o que é melhor: uma foto com Alfredo Nascimento e os quase 30 demitidos dos Transportes ou com FHC, Alckmin e Anastasia? O apoio caríssimo de Wagner Rossi ou um elogio de Jarbas Vasconcelos, Pedro Simon e Cristovam Buarque?

A presidente já tinha trocado gentilezas com FHC na festa da Folha, foi justa e carinhosa numa carta de aniversário para ele, ofereceu-lhe vaga à mesa de Barack Obama no Itamaraty. Tudo isso é bom, republicano, mas é preciso avaliar perdas e ganhos.

O aparato marqueteiro que Dilma herdou de Lula não dá ponto sem nó: a solenidade do Brasil sem Miséria com o tucanato foi justamente em São Paulo, coração do PSDB e do seu eleitorado.

E o aparato político cuida da aritmética no Congresso: o PR faz beicinho? Chama o PSD! Dilma se reuniu com Kassab em Brasília no mesmo dia da festinha com tucanos em São Paulo. Coincidência...

Assim, enquanto se discute se Dilma faz mesmo uma "faxina ética", ou apenas deixa rolar e se beneficia dela, a presidente vai virando estrela de uma frente pluripartidária contra a corrupção e contra a miséria. Só tem a ganhar. CPI da Corrupção? Esquece.

Lula virou "pai dos pobres", e Dilma se firma como "mãe anticorrupção". O PSDB corrobora alegremente, e assim ela vence resistências entre os 40 milhões que votaram na oposição, contra Lula e o lulismo. Por trás do discurso de que o Brasil sai ganhando, a oposição não lucra nada, Dilma fica com tudo. E Dilma é Lula.

PS - Até 13 de setembro!

CARLOS HEITOR CONY

Metástase

RIO DE JANEIRO - A imagem é mais do que sovada: de tanta corrupção que funciona como um câncer no organismo da nação, penetramos naquele estágio quase terminal da metástase. Não é um órgão, o baço, o fígado, o pulmão, o seio ou a pele que contraíram o tumor maligno: ele se espalhou e sua cura é cada vez mais problemática -se é que há cura radical para isso.

Dona Dilma deu azar. Geralmente no período que é considerado como a lua de mel do governante sempre aparecem problemas, alguns graves, mas a corrupção só começa a fazer estragos letais da metade para o fim do mandato.

Bem preparada, movida por ótimas intenções e lubrificada por apoios consideráveis, Dilma possui todas as condições para executar o seu programa de governo, alguns dos quais estão se iniciando, mas de forma confusa.

Numa reunião com a cúpula do governo, propõe e recebe propostas para erradicar a miséria, mas o telefone toca: alguém a avisa que o secretário-executivo de tal ministério está sendo preso pela polícia por alta corrupção. A ela só compete, inicialmente, pedir que não usem algemas, até que tudo seja apurado

A erradicação da miséria no país se transforma na erradicação das algemas. A reunião acaba brutalmente, cada qual vai examinar a própria consciência para ver se poderá ser o próximo.

A mídia e a internet estão congestionadas de mensagens e protestos contra a calamidade. Mas é pouco. Pensando nisso, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) está propondo marchas populares nas principais cidades, fazendo a voz das ruas chegar aos escalões responsáveis. Foi assim no caso do impeachment de Collor.

E foi justamente a ABI, dirigida na época por Barbosa Lima Sobrinho, ao lado de Lavenère-Wanderley, então presidente da OAB, que botaram os caras-pintadas nas ruas. Todos sabemos o resultado.

sábado, 20 de agosto de 2011



21 de agosto de 2011 | N° 16799
MARTHA MEDEIROS


E um dia você envelheceu

Em que momento você se dá conta de que está mais perto do fim do que do começo? Se esta crônica fosse um teste de revista, poderia ajudá-lo a descobrir se está mesmo ficando velho. Basta que tenha dito as seguintes frases com alguma assiduidade nos últimos meses:

a) Não enxergo mais nada sem meus óculos.

b) Como é mesmo o nome daquele programa de tevê de que a gente gostava?

c) Eu jurei que tinha deixado a chave do carro aqui.

d) Vai ter lugar pra sentar?

e) Não tenho mais paciência para ler autores novos, agora só me dedico aos clássicos.

f) Nunca ouvi falar dessa banda. Dessa outra também não.

g) Com essa chuva, prefiro ficar em casa.

h) Com esse calor, prefiro ficar em casa.

i) Quem viu um, viu todos.

j) Dois cálices agora é o meu limite.

k) Tem escada rolante?

l) Com essa noite linda e estrelada, prefiro ficar em casa.

Você se reconhece em pelo menos metade dessas afirmações? Pegue sua bengala, coloque seu aparelho de surdez e ouça: bem-vindo ao clube. Eu disse BEM-VINDO AO CLUBE! Pois é. Ao Clube dos Matusaléns que não parecem ter mais do que 40 anos, mas é só aparência, por dentro a alma já está andando de graça nos ônibus e frequentando fila especial no banco.

Na verdade, os esquecimentos e a preguiça nunca abalaram a minha autoestima. Troco o nome das pessoas desde que me conheço por gente e nunca fui de noitada, ficar em casa já era meu programa preferido aos 17 anos.

Ainda assim, tenho a cara de pau de dizer que mantenho o espírito cada vez mais renovado. Só me sinto meio caquética quando, ao ler uma entrevista de um cineasta famoso, ou de um empresário famoso, ou de qualquer pessoa famosa, descubro o ano em que eles nasceram: 1978. 1981. 1989. O quê?? Só pode ser erro de revisão.

Em 1978 eu estava me preparando para o vestibular, em 1981 eu já ganhava salário, em 1989 eu tinha três livros publicados, enquanto que os notáveis de hoje estavam em um berçário fazendo gugu-dadá.

E agora eles são capas de revista, profissionais respeitados, com família constituída e investindo em plano de aposentadoria. São adultos realizados que nasceram quando eu já era adulta. Humm. Então eu sou o que hoje?

A idade pesa quando descubro que quem nasceu bem depois de mim já está se queixando dos cabelos brancos. Só não me sinto totalmente humilhada porque quem estiver nascendo neste 21 de agosto logo vai estar dando entrevista e os fazendo enfrentar o mesmo estupor. Como assim, nascido em 2011 e já presidente de empresa? Ninguém escapa desse susto.


21 de agosto de 2011 | N° 16799
ARTIGOS - Moisés Mendes*


Maria Madalena e Patrícia Acioli

Maria Madalena, a que seguia Jesus, testemunhou a crucificação e depois o viu ressuscitar, é o mais bem-acabado ícone de uma difamação. Você sabe o que falam dela. Maria Madalena teria sido uma prostituta que decidiu seguir o salvador para se purificar.

A Bíblia, que se lê como quiser, nem em suas linhas mais labirínticas insinua que Maria Madalena se prostituía. Mas de onde tiraram a ocupação da moça? E daí, se era prostituta?

Se não sabemos os culpados, que se dane a vítima. Maria Madalena poderia ser um dos mitos intocáveis do cristianismo. Ela ofereceu a prova de que Jesus seria o filho de Deus, ao vê-lo sair do túmulo e voltar a andar. Ficou por aí como uma louca, uma coitada, uma mulher avulsa. Mulheres que se metem onde não devem são um mal bíblico.

A juíza Patrícia Amorim, assassinada com 21 tiros ao combater as máfias do Rio, é a nossa mais nova Maria Madalena. Você sabe o que falam de Patrícia. Era valente, sim, mas metia o dedo na cara dos policiais que viraram bandidos. Não se enquadrava nas liturgias da magistratura.

Namorou um cabo da polícia militar que lhe servia de escolta. Apanhava do cabo. O policial seria de uma facção adversária das milícias condenadas pela juíza. Dizem mais de Patrícia. Ela sabia que o cabo era torto, então também ela era torta. Dá para confiar numa juíza assim? De onde tiraram tudo isso? Do que se ouviu dizer, do que saiu de forma fragmentada na imprensa e da imaginação dos difamadores. Sai da boca de quem nos rodeia.

Patrícia poderia ser nossa heroína real, como contraponto civilizado ao capitão Nascimento, nosso herói primitivo de cinema. Iniciamos a destruição da memória de Patrícia no dia seguinte a sua morte, porque não nos consideramos merecedores do seu atrevimento. É nossa autoflagelação. A coragem da juíza não cabe na nossa acomodação. Vamos debater seus defeitos. Se nada sabemos dos assassinos, nos dediquemos à dissecação da vítima.

Você vai saber mais das “fraquezas” da juíza e é quase certo que não saberá quase nada dos criminosos. Matando Patrícia todos os dias, com nossos trabucos morais, nos livramos de um desconforto. O que vamos fazer dessa mártir imperfeita? Por que lidar com uma heroína que não entendemos, se temos heróis – e masculinos – menos complexos? A juíza estaria no lugar errado, assim como Maria Madalena não tinha que se meter com aqueles cabeludos. Não há como enfrentar métodos seculares de difamação.

No listão de vestibulandos aprovados pela UFRGS no ano passado, há centenas de Lucas, Marcos, Tiagos, Mateus, Joões, Josés. Há 29 Marias – Marias de Fátima, Marias Cristina, Isabel, Aparecida, Eduarda, etc., mas nenhuma Maria Madalena. Tenho ciúme de quem batiza uma filha com o nome de Maria Madalena.

Se a moça bíblica foi prostituta, como dizem, no que isso a desqualifica? E se a juíza valente era mesmo “uma pessoa complicada”, como a define a moral mediana dos seguidores de detratores, no que isso compromete sua bravura? Os difamadores merecem o capitão Nascimento, que combate milícias e máfias sem complicar ainda mais nossas aflições.

*Jornalista


21 de agosto de 2011 | N° 16799
VERISSIMO


Glória

O médico espera até Rogério se recuperar da notícia que acaba de receber. Rogério consegue se controlar e pergunta:

– Quanto tempo?

O médico tenta desconversar. É difícil especificar com precisão. Essas coisas variam. Não dá para dizer...

Rogério insiste:

– Quanto tempo de vida eu tenho, doutor?

– Poucas semanas – diz o médico.

Rogério sai do consultório atordoado. Poucas semanas! E ele tão moço. Injustiça, pensa. O nome daquilo é injustiça. Por que eu? Por quê?

Rogério se tranca no seu apartamento. Não recebe ninguém. Não dorme, não come. Passa o tempo todo com o olhar fixo na parede, pensando na injustiça que será a sua morte. Chora. Se embebeda. E então se lembra de uma coisa que seu amigo Marçal disse. Que queria morrer em cima de uma mulher, levando um tiro do marido ciumento. Marçal até elaborara: um tiro ou dois. Claro, pensou Rogério.

Claro! Uma morte gloriosa. Pra que esperar a morte sem reagir, sem arquitetar seu próprio fim? Seria sua maneira de enganar a morte, morrendo antes. E gloriosamente. Num ato vital, afirmando o seu vigor, afrontando a injustiça do seu fim precoce e deixando, para os amigos, uma legenda de amante trágico.

Sim, iria morrer em cima de uma mulher.

O Marçal, a princípio, acha aquilo uma loucura.

– Que loucura é essa?

Mas acaba concordando em ajudar o amigo. Planejam tudo. Para começar, precisam escolher a mulher. Mas mais importante do que a mulher é o marido. Que marido eles conhecem que mataria um amante da sua mulher? Garantido? Concluem pelo Rafa, marido da Soraia. O Rafa era truculento. O Rafa tinha porte de arma. E, uma vantagem adicional, a Soraia não era de se jogar fora.

Rogério não tem muito tempo para conquistar Soraia. Poucas semanas. Ajuda o fato de a Soraia estranhar a nova personalidade do Rogério, que parece mais soturno. Mais sério, ele que sempre fora tão brincalhão, tão superficial. Parece um condenado.

E Soraia acha aquilo atraente. Encontram-se duas ou três vezes. E Rogério a convence a ir ao seu apartamento. Enquanto a espera, liga para Marçal, que deve dar um telefonema anônimo para o Rafa e avisar que sua mulher o está traindo, na rua tal, número tal. Soraia chega no apartamento.

Rogério finge que esquece a porta aberta, para o Rafa poder entrar. Os dois vão para a cama. Nisso toca o telefone. É o médico, para avisar que houve uma troca de radiografias e Rogério não vai morrer, afinal. E Rogério ouve a porta do apartamento sendo aberta.


21 de agosto de 2011 | N° 16799
PAULO SANT’ANA


O catálogo dos chatos

Há vários tipos de chatos, este catálogo, construí-o pacienciosamente nos últimos 20 anos:

O CHATO PERDIGOTO – É o que enche a sua cara de saliva enquanto conversa com você. Não adianta nem você puxar o lenço para limpar-se, que ele não se flagra.

O CHATO CONSCIENTE – É todo aquele chato que em meio à conversa com você sempre diz: “Eu sei que estou te chateando, mas...”.

O CHATO FITADOR – É aquele que segura você nos ombros e diz com veemência: “Olha bem para meus olhos. Não assim, mas olha fixamente, fundamente para os meus olhos e vê se eu não estou sendo sincero...”.

O CHATO DEMORADO – É aquele que diz: “Estou lhe telefonando para ver se o senhor agenda um encontro comigo. Preciso de uma tarde inteira para abordar um assunto muito interessante com o senhor...”. A tarde inteira?

O CHATO INDAGADOR – É o que conversa, conversa, logo depois pergunta: “Entendeste? Sabes onde eu quis chegar? Se não entendeste, não me custa nada repetir...”.

O CHATO-SUGESTÃO – Ele o convida para jantar em um restaurante. O garçom traz o cardápio, você o apanha e fica olhando a imensa variedade de pratos. O chato arranca o cardápio das suas mãos e diz o seguinte: “Eu conheço este restaurante. Nada do que tu possas pedir é melhor que o frango à milanesa que tem aqui. É delicioso. Nem olhes mais para o cardápio. Seu garçom, por favor, traga-nos dois frangos à milanesa”. Com o chato-sugestão, você não tem escolha.

O CHATO CARINHOSO – É o que diz uma frase e lhe faz um carinho. Está falando, espalma as mãos e as coloca sobre seus dois ouvidos, ainda dá uma sacudidela. Quase sempre, em meio à conversa, vibra-lhe beliscões nos braços e na sua barriga, quando não encosta o corpo inteiro no seu corpo em meio à tertúlia. O chato carinhoso tem orgulho de ter intimidade com você.

O CHATO CELULAR – É o que marca encontro com você num bar ou num restaurante e fica, durante os 180 minutos de duração do encontro, atendendo ao celular ou fazendo ligações. Este é o chato mais atualizadamente chato e frequente que eu conheço.

O CHATO TELEFÔNICO – É aquele diretor ou gerente que o recebe em seu gabinete, depois de você ter agendado dias antes a sua visita. Incrivelmente, ele não conversa com você, fica o tempo inteiro atendendo aos telefonemas que recebe.

Atende 10, 15 telefonemas e você ali esperando. Todas as pessoas que telefonam para ele furam a fila em que você estava em primeiro lugar. E, ainda por cima, toda a fila de ausentes telefonadores é atendida, enquanto você, fisicamente presente, é praticamente desconhecido pelo figurão.

O CHATO PERSCRUTADOR – É o que entra no restaurante repleto de clientes. Ele está sozinho. Fica olhando detidamente para as mesas, esperando reconhecer alguém. É evidente que ele vai reconhecê-lo, quando então ele se aproxima da sua mesa e puxa conversa ou intenta um cumprimento.

Começa a conversa, você sentado com seus acompanhantes e ele de pé, sozinho. Só que ele já disse três vezes que está sozinho, insinuando que você o convide para sentar à mesa. E você fica na dúvida: será que seus acompanhantes vão tolerar o intruso? É terrível.

Ruth de Aquino

Seremos algum dia japoneses?

O dinheiro e as barras de ouro estavam em cofres e carteiras de vítimas do tsunami no Japão. Em casas e empresas destruídas. Nas ruas, entre escombros e lixo. Ao todo, o equivalente a R$ 125 milhões. Dinheiro achado não tem dono. Certo? Para centenas ou milhares de japoneses que entregaram o que encontraram à polícia, a máxima de sua vida é outra: não fico com o que não é meu.

E em quem eles confiaram? Na polícia, que localizou as pessoas em abrigos ou na casa de parentes e já conseguiu devolver 96% do dinheiro.

A reportagem foi do correspondente da TV Globo na Ásia, Roberto Kovalick. A história encantou. “Você viu o que os japoneses fizeram?” Natural a surpresa.

Num país como o Brasil, onde a verba destinada às inundações na serra do Rio de Janeiro vai para o bolso de prefeitos, secretários e empresários, em vez de ajudar as vítimas que perderam tudo, esse exemplo de cidadania parece um conto de fadas. O que aconteceu em Teresópolis e Nova Friburgo não foi um mero e imoral desvio de dinheiro público. Foi covardia.

Político japonês não é santo. Mas digamos que, em alguns países, os valores da população são menos complacentes do que em nosso cordial patropi. E a impunidade não é regra. Em que instante a nossa malandragem deixa de ser folclórica e cultural e passa a ser crime de desonestidade? Por que a lei de tirar vantagem em tudo está incrustada na mente de tantos brasileiros? A tal ponto que os honestos passam a ser otários porque o mundo seria dos espertos?

A presidente Dilma Rousseff não parece fazer parte do time dos espertos. É o que tem atraído para ela um tsunami de simpatia popular. Você deve ter reparado. Ao discursar, Dilma não faz piada, não diz palavrão, nem comete analogias com o futebol. Ao contrário.

Ela é a antítese do palanqueiro populista. Tem dificuldade em falar a linguagem do povão até quando coloca o chapéu das Margaridas, as trabalhadoras rurais. Promete “implantar, implementar, disponibilizar”.

Eles devolveram às vítimas do tsunami R$ 125 milhões. Precisamos – nós e a polícia – aprender a agir assim

Seu desconforto com o palco é evidente. Dilma lê. Não é bom para ela, porque os olhos baixam. A leitura torna o discurso mais frio e hesitante, porque há vírgulas. Ela tropeça nos travessões. Seu pensamento não flui. É pedir demais que ela se torne um dia uma oradora que arrebate multidões.

Mas a ausência de carisma parece não importar ao brasileiro. O eleitor não aguenta mais a cambada que suga recursos de nossa Saúde, nossa Educação. Dilma parece um peixe fora do aquário de piranhas políticas. E por isso conquista.

“Quero reafirmar a importância concreta e simbólica do pacto que firmamos hoje. É o Brasil fazendo a faxina que tem que fazer, a faxina contra a miséria”, disse Dilma na sede do governo de São Paulo. Foi um discurso para calar quem tenta isolar a presidente. Ela quis mostrar que está acima das disputas palacianas e não está sozinha coisa nenhuma. O “pacto republicano” de Dilma é suprapartidário. As fotos do “flerte” com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso devem ter causado urticária ao PT. Onde está mesmo a “herança maldita”?

Leitores me pediram para encampar a campanha anticorrupção do gaúcho Pedro Simon. Esta coluna não precisa encampar nada. Simon disse: “A sociedade tem que liderar o movimento”. É patético o coro de “volta, Lula”, ensaiado pelos que comiam churrasco no Palácio da Alvorada e hoje se veem privados da picanha presidencial.

As redes sociais começam a se mobilizar. Cariocas marcaram para 20 de setembro um grande ato contra a corrupção, na Cinelândia, centro do Rio, onde 200 mil pediram em 1984 as Diretas Já. “Queremos evitar batuque, por isso não escolhemos a orla”, dizem os organizadores. Há a sensação de que o movimento precisa estar nas ruas para ganhar legitimidade.

Políticos incomodados tentam nos impingir o medo. Uma frente anticorrupção jogaria o país na anarquia ou na ditadura. Isso é conversa para brasileiro dormir. Um dia, todos precisaremos aprender que não se coloca no bolso, na bolsa, nas meias e nas cuecas um dinheiro que não nos pertence. É roubo.


20 de agosto de 2011 | N° 16798
NILSON SOUZA


Escrito na Lua

Oprograma Espaço Aberto, da Globo News, apresentou dia desses uma interessante entrevista com o último homem a pisar na Lua, o astronauta norte-americano Eugene Cernan, que está com 77 anos. Ele foi questionado pelo apresentador e também por quatro crianças brasileiras, que haviam lido previamente sobre sua história.

Uma delas lembrou que na ocasião – comandando a Apolo 17, em 1972 –, ele deixara gravado em solo lunar o nome de sua filha. E perguntou-lhe:

– O que o senhor escreveria se voltasse lá agora?

O velho astronauta pensou um pouco e respondeu que deixaria exatamente uma mensagem para as crianças de hoje:

– Sonhe o impossível. Depois, vá lá e faça!

As pegadas de Eugene Cernan no solo arenoso do satélite terrestre, onde ele e seu companheiro Harrison Schmitt permaneceram por 22 horas, já devem ter-se apagado. Ele foi o 12º terráqueo a andar por lá. Depois, ninguém mais pisou na Lua, por puro desinteresse das autoridades e dos cientistas, provavelmente porque os exploradores não encontraram petróleo, nem ouro, nem qualquer outra substância valiosa para a insaciável ambição humana. Desistimos da Lua, mas não de buscar novidades longe de casa.

Enquanto as naves robotizadas percorrem o espaço à procura de outros mundos mais promissores, os Estados Unidos acabaram de recolher para a garagem o ônibus espacial, para desgosto do velho astronauta, ainda saudoso da sua proeza. Ele falou com gosto sobre o seu terceiro passeio espacial.

Explicou aos meninos do Brasil por que aproveitou a caminhada na Lua para saltar como um canguru, enquanto cantava uma canção popular de seu país. Disse que a brincadeira foi facilitada pela ausência de gravidade, que deixa uma pessoa com um sexto de seu peso. E justificou:

– Tudo o que você faz na vida tem que ser bem feito. Mas você tem que se divertir.

Essa talvez seja a principal lição da maior aventura do ser humano em todos os tempos: na última vez que um homem pisou na Lua, ele voltou a ser criança. E a Lua, mesmo pisoteada, ainda nos faz sonhar, como recomenda o velho astronauta.

Só não devemos esquecer do principal: um sonho até pode ser a metade de uma realidade, mas só se concretiza quando o homem age.


20 de agosto de 2011 | N° 16798
DAVID COIMBRA


Ganhando no grito

Temos uma roda de amigos que partilha chopes cremosos às sextas-feiras. É roda mesmo, porque sempre tentamos nos acomodar em mesas redondas, onde todos podem conversar olhando no olho. Nessa última sexta, nos acomodamos no nosso canto no fundo do Schulinhas e eu pedi um filé simples com arroz.

Se você pretende testar a destreza de uma cozinha, peça filé simples com arroz. Não peça à milanesa nem à parmegiana, que esses frufrus só servem para camuflar o filé. Filé simples, despojado de aparatos, nu como uma Ellen Roche, dependente apenas da habilidade do cozinheiro com as temperaturas e os temperos, esse é o filé do qual se sente o real sabor da carne.

Bem. O meu filé, ao aterrissar na mesa, deixou-me comovido quase às lágrimas. Veio do tamanho de uma bola de futsal, crocante por fora, tenro por dentro. Macio como macias devem ser as pernas de Megan. E saboroso, tão saboroso... Foi enquanto o trinchava e suspirava que alguém, acho que o Admar ou o Cabeça, falou nos gurcas.

Por que alguém haveria de citar os gurcas naquele momento inefável? Não lembro muito bem, talvez devido aos chopes dourados e gelados que ingeri depois do filé. Sei que o assunto roçava a Guerra das Malvinas e o Admar lembrou que os hermanos corriam de pavor quando ouviam o grito de guerra dos gurcas:

– Aiô, gurcali!!!

Algo que tinha mais ou menos o mesmo significado do que gritava o Cabo Rústi para o seu bravo pastor alemão:

– Aiô, Rintim!!!

É que a fama dos gurcas chegou às Malvinas antes deles. Em 1982, todos os argentinos sabiam que aqueles homens pequenos, morenos e graves eram guerreiros terríveis e temíveis. Não por acaso. Os gurcas descendem dos mais terríveis e temíveis guerreiros da História humana: os mongóis.

Encarapitados no Nepal, no alto do Himalaia, os gurcas vivem para lutar. Sua ética guerreira se assemelha à dos hoplitas espartanos ou à dos samurais japoneses. Para eles, o que importa é a honra em combate, jamais a sobrevivência. Um gurca prefere morrer a render-se. Os britânicos os conheceram na guerra do Nepal, nos tempos da Rainha Victoria. Ficaram admirados com a coragem dos gurcas, assim como os gurcas ficaram admirados com a disciplina inglesa. Um não podendo bater o outro, uniram-se.

Os gurcas foram incorporados ao exército britânico e dele fazem parte ainda hoje. São usados principalmente como tropa de assalto. Seu símbolo é o kukri, um punhal curvo que herdaram de ninguém menos do Alexandre, o Grande. O kukri é a extensão do braço de um gurca. Com essa adaga mortífera, eles degolam o inimigo de um só golpe, rasgando-lhe a jugular.

Tudo isso sabiam os soldados argentinos quando um pelotão gurca chegou às Malvinas para enfrentá-los, e era por isso que os argentinos fugiam como coelhos ao ouvir o selvagem grito de guerra dos gurcas antes do ataque.

Que não se critique os argentinos. Eles não foram os primeiros a correr dos urros de morte de um inimigo. Até os legionários romanos, tão bravos e disciplinados, que com bravura e disciplina conquistaram o mundo, até eles correram de medo quando ouviram pela primeira vez o brado dos germanos numa floresta da Gália antiga. Isso antes de o general Julio Cesar ir para lá, ver e vencer, é claro.

Você já viu a dança haka dos All Blacks, a seleção de rúgbi neozelandesa? Procure no YouTube. Antes dos jogos, os All Blacks fazem uma dança de guerra maori, gritam e afrontam os adversários olhando-os nos olhos com fúria. Não por acaso, são a melhor seleção de rúgbi do planeta. Também Mike Tyson, depois de saltar as cordas do ringue, olhava nos olhos do adversário, olhava duro, olhava sem piscar, e já naquele olhar começava a nocauteá-lo.

A torcida do Grêmio já pôs medo nos adversários que pisavam na grama do Olímpico. Na decisão do Brasileiro de 96, os jogadores da Portuguesa contaram que, antes do jogo, dentro do vestiário, ouviam o rugido da torcida e tremiam. E agora, não muito tempo atrás, o Grêmio foi imbatível em seu estádio. Passou dois anos sem perder no Olímpico. Por quê? Por causa do urro da torcida. Agora não mais. Por quê? Não foi a torcida que mudou.

Pois até os All Blacks perderam para os sul-africanos, até os germanos foram conquistados pelos romanos, até os gurcas foram incorporados pelos ingleses, qualquer um pode ser vencido, a despeito de seus gritos de guerra ameaçadores. Porque não adianta berrar e esbravejar, se não se pode cumprir a ameaça. Um exército só é terrível e temível se seus guerreiros sabem lutar.


20 de agosto de 2011 | N° 16798
PAULO SANT’ANA


Rememorações

Estava recordando anteontem as várias formas que usei para arranjar dinheiro quando guri.

Vendia garrafas. Cruzava um ferro-velho de carroça pela minha casa, e eu passava nos cobres as garrafas que meu pai juntava.

Todo o dinheirinho que conseguia tinha a finalidade de comprar uma entrada para a matinê de domingo, no Cine Brasil, Avenida Bento Gonçalves, ou no Cine Miramar, na Avenida Aparício Borges.

E o resto era para comer doces. Quando sobrava algum, tinha eu acesso à maior delícia do mundo: uma lata de leite condensado marca Moça.

E abria a lata furando-a duas vezes, uma para chupar o leite, a outra para entrar o ar e manter o fluxo.

Outra maneira que eu arranjava para buscar trocados era a venda de ossos. Pegava um carrinho com pneus e subia o Morro da Polícia por onde hoje é uma rua muito populosa, a Volta da Cobra, que naquele tempo era uma estrada silvestre de indizível beleza natural.

O nome da estrada se devia a que, em determinada parte de seu trajeto, o que deve acontecer ainda hoje, nas imediações da Vila São José (Coreia), o percurso virava um verdadeiro zigue-zague, serpenteando as grandes árvores cheias de cipós.

Uma selva luxuriante, dentro de Porto Alegre.

Pois eu ia até lá para procurar esqueletos de mamíferos mortos, juntava os ossos e os vendia ao ferro-velho. No dia em que isso acontecia, eu mergulhava num festim de guloseimas.

Mas, para quem é ou foi brigadiano antigo, eu vou recordar um estratagema que os soldados usavam para driblar suas dificuldades financeiras: era o que eles chamavam de “touro”.

Consistia em adquirirem a crédito na “cantina” gêneros de toda espécie e revendê-los à vista no comércio estabelecido de armazéns, evidentemente que a preço de custoso deságio.

Vendo aquilo, descobri uma forma de arrumar dinheiro, eram os jeitos que eu, garotinho imberbe, bolava para arrumar recursos.

Comprava na conta de meu pai no quartel e revendia. Quando, no fim do mês, na data do pagamento do soldo, meu pai descobria, então eu sofria dolorosas surras de cinta dele.

Quando uma criança não ganha mesada, tem de ter muita imaginação para arrumar dinheiro.

Nunca me esqueço do dia em que fiz um “touro” para poder assistir ao badalado filme colorido Sansão e Dalila, com Victor Mature e Hedy Lamarr. Outra vez, foi para assistir ao épico Gunga Din, que ficou cravado para sempre em minha memória.

Assistir aos circos que vez por outra armavam suas lonas no Partenon e na Vila Santa Maria, no entanto, nunca me custou nada: eu tinha uma técnica muito esperta para “furar” os circos, sempre por baixo da lona estendida, sempre depois de já ter começado o espetáculo.

Dias de glória e de felicidade arteiras os da minha infância. Dias de folguedos, de brincadeiras, de aventuras.

Nem de leve me assaltava o espírito o medo do futuro, de como iria eu resolver o meu sustento, o que só agora sei o quanto foi sacrificado.

Mas é que a gente passa pela infância como se fosse por um sonho, como se ela não tivesse existido, tanta era a inocência e a pureza das nossas intenções.


20 de agosto de 2011 | N° 16798
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


A Enciclopédia do Folclore Gaúcho

Luis da Câmara Cascudo o maior folclorista brasileiro e aclamado como um dos cinco maiores folcloristas do mundo, escreveu o Dicionário do Folclore Brasileiro. Carlos Galvão Krebs, meu mestre e amigo, levou-me a Natal (RN), onde convivemos com o grande mestre potiguar.

Depois, estivemos com Luis da Câmara Cascudo aqui em Porto Alegre, quando Dante de Laytano o trouxe para um encontro do Lions Clube. Encontros assim foram sempre fecundos quando se tratavam de Cascudo. Ele era de um dinamismo intelectual tremendo.

Em São Paulo e em congressos, sempre graças a Carlos Galvão Krebs, convivi com outro monstro sagrado do folclore brasileiro – Alceu Maynard de Araújo. Alceu fez uma espécie de enciclopédia do folclore brasileiro, notadamente com destaque para São Paulo e Minas Gerais, mas com incursões até no Rio Grande do Sul. No RS, eu tive laços de amizade com Krebs, Dante de Laytano, Walter Spalding, Barbosa Lessa, Glaucus Saraiva e Paixão Côrtes.

Com todos eles, aprendi um pouco, mas com Krebs terminei me aprofundando em indumentária gaúcha, danças folclóricas, folclore afro-gaúcho e culinária gaúcha. Com o apoio de Krebs, organizei e fundei a Escola Gaúcha de Folclore de nível superior, que visava a formação de professores para essa disciplina. Não tive forças para conseguir o reconhecimento da Escola em nível superior, e a bela iniciativa deu em nada.

Depois foi a vez do Curso de Pós-graduação em Folclore da Faculdade Palestrina, organizado e dirigido pelo professor José Roberto Diniz de Moraes, curso que funcionou com brilho durante alguns anos, treinando, sobretudo professoras e professores. Paixão, Glaucus e eu éramos do corpo docente. Nenhum de nós publicou tanto as suas pesquisas, talvez porque a maior parte delas não se completava.

Quem fez isso e de maneira brilhante, foi Paixão Côrtes com seu alentado livro Folclore Gaúcho. Trata-se de um trabalho enciclopédico, maior e mais amplo do que tudo que nós outros fizemos e publicamos. Que beleza! Ao ter em mãos agora a bela reedição da Corag lançada na Feira do Livro, tirei um peso das costas, um complexo de culpa pelas pesquisas feitas que não iam se completar nem aparecer em livro. O folclorista não é a mensagem, mas o mensageiro.

Ele não cria nem transforma, mas devolve ao povo em forma de livro e curso o que com o povo aprendeu e Paixão faz este trabalho melhor do que ninguém. Fez pelo folclore gaúcho o que nenhum de nós conseguiu: fez o que Cascudo e Maynard fizeram pelo Nordeste e pelo Centro do Brasil.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



19 de agosto de 2011 | N° 16797

BENEFÍCIO PARA APOSENTADOS

Projeto prevê isenção do IR a partir de 60 anos

Um projeto que isenta os aposentados e os pensionistas do INSS com mais de 60 anos de pagar o Imposto de Renda foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e passará agora por avaliação da Comissão de Assuntos Econômicos. O projeto de lei (PLS 76/11) da senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS) altera a legislação do Imposto de Renda (Lei 7.713/88) para prever o benefício.

Ao justificar a necessidade do projeto, a senadora explica que o reajuste do salário mínimo tem sido sistematicamente maior que o dos benefícios da Previdência e a isenção reduziria o efeito da desvalorização:

– Hoje, nada menos que 69% dos benefícios já estão nivelados pelo piso. Mantida essa tendência, em poucos anos, todos estarão valorados, no piso, pelo salário mínimo.

Segundo o presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos do Rio Grande do Sul (Sindnapi-RS), Adão Haggstram, a isenção é importante para todos os aposentados e pensionistas da Previdência Social, já que o teto é R$ 3.869.

– É o momento da vida em que se gasta mais com remédios, existem necessidades especiais de saúde. E a maioria ganha muito menos – aponta.

Pela regra atual, aposentados e pensionistas com mais de 65 anos já pagam menos IR que os demais trabalhadores porque têm limite de isenção maior. Assim, só pagam IR os aposentados com essa idade ou mais se receberem mais de R$ 3.133,22.

Se o projeto entrar em vigor, quem ganha mais que isso não irá precisar pagar o imposto. No Senado, o texto tramita em caráter conclusivo, ou seja, não precisa passar por votação em plenário – bastam as votações nas comissões.

Se aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos o projeto seguirá diretamente para votação da Câmara dos Deputados.



19 de agosto de 2011 | N° 16797
ARTIGOS - Cleber C. Prodanov*

Produzir, criar e inovar

Estamos vivendo um novo cenário e uma nova ordem econômica mundial neste começo do século 21, sobretudo pela quebra quase secular de uma polaridade política e econômica marcada pela presença de um conjunto de nações capazes de disputar um protagonismo multipolar.

Em contrapartida, toma corpo uma nova economia, orientada não apenas na produção de bens, mas, acima de tudo, na geração do conhecimento, especificamente, no processo de criação e seu controle.

Nesse sentido, não apenas produzir, mas ter o domínio intelectual dos produtos e processos passa a ter um peso considerável. Isso está mudando a maneira como as pessoas são educadas para a vida e o mundo do trabalho, assim como vai influenciando mudanças na organização e na ação das empresas e dos governos.

Esse processo é tão acelerado, que nações, como o Brasil, por exemplo, que, ao longo do século 20, fizeram grandes avanços em termos científicos, tecnológicos e industriais podem ter um grande retrocesso diante desse novo modelo econômico da sociedade do conhecimento. Sem esquecer que nosso país ainda tem uma grande necessidade de manter, criar e desenvolver cadeias produtivas industriais que gerem empregos, renda e ajudem a disseminar resultados para a sociedade.

Ainda carecemos de ações mais efetivas de alguns setores econômicos, no sentido de constituir laços sólidos entre as nossas empresas e as universidades, as escolas técnicas e os institutos de pesquisa. É preciso avançar para além da produção e, investindo na pesquisa, passar ao desenvolvimento e domínio de áreas estratégicas de conhecimento, fazendo com que se supere uma visão estritamente produtiva e se avance para as áreas de domínio intelectual.

Assim sendo, nosso desafio no Brasil é triplo: consolidar uma estratégia industrial competitiva para as empresas, alargar o mercado interno e a inserção de grandes grupos sociais ainda marginalizados na sociedade e avançar na melhoria qualitativa e na universalização do ensino em todos os níveis.

De quebra, ainda trabalhar o estado da arte do conhecimento e de sua transferência, ou seja, a inovação. Esses movimentos impedirão que aumente a nossa dependência criativa e tecnológica, que pode, nos próximos anos, inviabilizar nossa economia e sociedade de maneira irreversível.

O mundo ingressou de vez na chamada sociedade do conhecimento, em que pensar, criar e inovar tornaram-se prioridades em todas as organizações, quer públicas ou privadas, sejam elas de atividades industriais, de serviços ou de educação.

*Secretário de Estado da Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico


19 de agosto de 2011 | N° 16797
PAULO SANT’ANA


O coelho

A Sociedade Interamericana de Polícia (SIP) promoveu um concurso entre o FBI, a Swat e o Bope (RJ).

Foram levados os três batalhões, cada um com 300 homens, via aérea, para a Nova Zelândia.

Lá chegados, foi solto um coelho na selva e destacado o batalhão do FBI para procurá-lo.

Passados 15 minutos, voltou o batalhão, trazendo o coelho capturado.

Foi solto outro coelho e chegou a vez de o batalhão da Swat ir procurar o animal na selva.

Passados 30 minutos, lá estava o coelho capturado pela Swat.

Até que o Bope se preparou para procurar o terceiro coelho.

Solto o bicho na selva, o batalhão brasileiro penetrou na floresta para procurá-lo.

Passaram-se várias horas e nada de o Bope voltar. Depois de dois dias, finalmente voltou o Bope, trazendo à sua frente um nativo neozelandês algemado e sangrando muito por todo o corpo.

O presidente do concurso, nada entendendo, perguntou ao coronel comandante do Bope: “Mas, afinal, o que aconteceu?”.

E o coronel: “Ele confessou”.

E o nativo gritava algemado: “Eu sou o coelho! Eu sou o coelho!”.

Essa história é meio que injusta para a polícia carioca. Não que ela não torture.

Mas é que eu li um trabalho jornalístico, esses dias, em que ficou comprovado que a polícia norte-americana tortura.

A gente vê nos filmes americanos a polícia procedendo corretamente, dando voz de prisão e declarando que o preso tem o direito de ficar calado e o que falar pode ser usado contra si, etc.

É uma solenidade que dá a impressão a todos nós que assistimos aos filmes de que se trata de uma polícia respeitadora dos direitos humanos.

Mas essa reportagem que li, feita nos EUA, comprova que a polícia norte-americana é assídua em torturar presos. E em alguns setores da polícia estadunidense há até agentes especializados em tortura.

Aquele tratamento digno que se dá aos presos nos filmes não é bem assim, frequentemente os presos são maltratados e torturados.

Não é para menos, o governo Bush, depois do 11 de Setembro, instalou no Iraque, com o apoio do Congresso, várias prisões em que os detentos eram torturados e submetidos aos mais sórdidos vexames. E, esses dias, para minha desolação, o governo Obama convalidou a tortura aos prisioneiros de guerra junto ao Congresso.

É o fim...


19 de agosto de 2011 | N° 16797
DAVID COIMBRA


Perigos do mundo

Meu pai era um bêbado. Bêbado mesmo, doente, de cair na rua e ficar estirado ao longo do meio-fio. Na vida, o excesso de bebida foi a causa de quase todos os seus problemas. Na morte, o excesso de bebida foi consequência.

Eu, aqui, gosto de beber. Mas não sou um bêbado. Ainda assim, muitas vezes bebi demais e em muitas dessas vezes cometi besteiras das quais me arrependi no dia seguinte, o da sobriedade e da culpa. Só que essas besteiras não chegaram a ser graves, não comprometeram a minha saúde, nem o meu futuro.

Gostaria de acreditar que isso me aconteceu por premeditação, por inteligência. Não foi. Foi por sorte.

Minha maior sorte, e também a dos meus amigos, é que nós não dirigíamos quando tínhamos 18, 19, 20 anos de idade. Naquela época, era mais difícil comprar carro, sobretudo se sua mãe trabalhava como professora do Estado, desquitara-se do seu pai bêbado e tinha três filhos para criar.

Mais tarde, aos vinte e tantos anos de idade, já ganhando o meu próprio salário, minhas prioridades eram outras: comprar livros, pagar o aluguel e eventuais jantares para as eventuais namoradas, não muito mais do que isso.

Hoje, reconheço que aquela precariedade econômica foi uma bênção. Se dirigisse na adolescência, bebendo como bebia, sendo tolo como era, algo de muito ruim teria me acontecido.

Hoje, olhando para o meu filhinho, penso nos perigos do mundo, e tenho medo. Um medo que nunca senti quando era mais jovem e mais bobo. Porque agora não temo por mim. Temo por ele. Sei muito bem que as ameaças rondantes a quem vive numa grande cidade são, todas, potencializadas pelo mal que vitimou meu pai: o álcool.

É por isso que aplaudo uma medida tomada há pouco pelo governo de São Paulo: o endurecimento da punição aos estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas a menores de idade.

Bares e restaurantes flagrados nessa infração serão pesadamente punidos. Se forem reincidentes, terão o alvará de funcionamento cassado. Não é preciso ser nenhum sociólogo para prever: diminuirá a violência nas ruas e no trânsito da cidade em curto espaço de tempo.

Pois foi como eleitor e contribuinte que, humildemente, enviei por e-mail uma sugestão à assessoria do governador Tarso Genro, dias atrás: que ele propusesse lei semelhante no Rio Grande do Sul. Quarenta e oito horas depois, recebi a resposta.

O governador, durante reunião da Sala de Gestão, solicitou que em 10 dias seja encaminhada proposta nesse sentido à Casa Civil. Espero que a comunidade e a Assembleia Legislativa apoiem a aprovação dessa medida. Em nome do futuro vitorioso dos que hoje são meninos, como o meu filhinho. Em nome do passado fracassado dos que já se foram, como o meu pai.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011


CONTARDO CALLIGARIS

"A Árvore da Vida" e "Melancolia"

Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo

No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.

Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.

Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".

A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".

Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?

Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!

Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.

Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.

Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.

Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.

Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana.

Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.

Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.

No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".

Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.

Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.

ccalligari@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Pântano que traga ministros

BRASÍLIA - Cai o quarto ministro, Wagner Rossi, da Agricultura. O PMDB ameaça, o PT se omite, o PR se diz "independente", mas Dilma tem suas armas -e suas versões.

Sai o PR da base aliada? OK, entra o PV. O PMDB é tão grande quanto instável? OK, vem aí o PSD do prefeito Gilberto Kassab (que, aliás, encontra-se hoje com Dilma).

Quando o que se discute é faxina ética, há inversões e chegam apoios à presidente de onde ela menos esperava: de senadores como Pedro Simon e Jarbas Vasconcelos, do PMDB, que não têm nada de governistas. Para a imagem do governo, era melhor ter Wagner Rossi ou passar a ter Simon e Jarbas?

Na versão para a opinião pública, Dilma faz uma "faxina ética". Na repassada para aliados do PMDB, do PT, do PTB e de todo o resto, ela nega e explica que não é ela quem está com o rodo, a vassoura e o aspirador de pó nas mãos. A faxina é da responsabilidade de outras instituições e instâncias. Mesmo que quisesse impedi-la, não teria meios para isso.

Na prática, diz, quem investiga e joga luz sobre os desvios nos Transportes, na Agricultura e no Turismo são o TCU, a Polícia Federal, o Ministério Público, a imprensa. Ela alega que não ajuda, mas também não pode atrapalhar. Assim, tenta ficar com os bônus, sem arcar com os ônus. Enquanto a economia deixar, não há problema.

Dilma, assim, tenta se equilibrar entre dois personagens convenientes: a presidente que varre a corrupção e a presidente que nega estar varrendo os corruptos. Como se eles caíssem sozinhos.

A base aliada ao Planalto está insatisfeita, mas continua imensa, movendo-se, reacomodando-se, ajeitando-se como pode, enquanto faz cálculos sobre onde e em que momento fincar estacas: no terreno firme do lulismo ou no ainda pantanoso caminho de Dilma.

Wagner Rossi é o quarto ministro a afundar nesse pântano. Quem e quando será o próximo?

elianec@uol.com.br

CARLOS HEITOR CONY

Os deuses de Hitler

RIO DE JANEIRO - Não tenho mais idade para me surpreender com nada que aconteceu, acontece ou acontecerá no mundo. Mesmo assim, como os dependentes de drogas, tenho recaídas atormentadas. Uma nem chegou a ser uma recaída, apenas me esquecera dela, e um livro sobre a Segunda Guerra Mundial a trouxe de volta.

Já no final do conflito, com a Alemanha praticamente vencida, Hitler jantava com o pequeno círculo de colaboradores que o cercavam na toca do lobo. Vegetariano, frugal, falando muito e alto diante de plateias imensas, era reservado, quase taciturno na intimidade.

Dois convivas falavam sobre Wagner, um deles preferia o "Lohengrin", o outro, "As Valquírias". Dois temas profundamente alemães, da velha mitologia germânica que nada tem com a sua equivalente mediterrânea que predominou no ocidente greco-romano.

Hitler, que admirava Wagner pelo conjunto da sua obra, praticamente não tinha preferências. Uns falavam que gostava muito de "Os Mestres Cantores", outros garantiam que sua alma fora vendida a "Tristão e Isolda". De repente, como que saindo de um sono milenar, o ditador disse pausadamente: "Quem não entende Wagner jamais entenderá o nazissocialismo".

Ninguém falou mais nenhuma palavra. Comeram em silêncio e cada qual ficou na sua. Hitler devorou uma torta com creme e levantou-se, retirando-se para os seus aposentos, deixando no ar aquela observação inesperada.

Sem escolaridade formal, vendendo pequenas aquarelas para os turistas que visitavam a catedral de Viena, cabo anônimo durante o primeiro conflito mundial, depois de ter conquistado metade do mundo e iniciando seu fim após ter desgraçado todo um tempo na história do homem, ele se refugiou em "Lohengrin", nas "Valquírias", sei lá em que diabo -no fundo, seu deus preferido.


18 de agosto de 2011 | N° 16796
ARTIGOS - Luiz Fernando Oderich*


Quem matou a juíza Patrícia Acioli?

Quem matou a juíza Patrícia Acioli é uma pessoa gentil, bem-intencionada, politicamente correta, com os mais nobres propósitos da vida. É aquele tipo de pessoa que um dia achou que, no Brasil, os coitadinhos dos presos necessitavam um dia em sua homenagem. Lutaram por isso e conseguiram que se criasse o “Dia do Detento”.

São aqueles que, levando as prerrogativas jurídicas às alturas, impedem que os bêbados soprem no bafômetro, são aqueles que fizeram essa legislação penal frouxa e aqueles que a querem afrouxar ainda mais.

O rei do Direito Penal brasileiro é o criminoso. Ele é tudo! A ele devem ser dadas todas as regalias. Visita íntima e progressão da pena, sem levar em conta a periculosidade do infrator, instituída pelo ministro Márcio Thomaz Bastos, salário mínimo de R$ 862 para ficar sem fazer nada. Castigá-los? Não!

Dane-se o trabalho da Polícia Civil e Militar. Lixe-se o Ministério Público. Interesse social? Isso não existe. A sociedade gera esses excluídos sociais, portanto tem de aguentá-los no peito. Familiares enlutados clamam por Justiça, mas isso é um luxo pequeno-burguês que não cabe. Onde pensam que estão? Num país civilizado?

Não podemos magoar nem traumatizar o marginal. Portanto, se a “cana” prendeu, solte imediatamente. E como fica a situação do policial militar que cumpriu a lei? De quem arriscou a vida para realizar a prisão? Não importa!

Choramos, e devemos chorar mesmo, a morte dessa brava juíza, pois não nos comove mais a morte de policiais e agentes penitenciários. Esses não dão mais notícia, tristemente já viraram rotina.

A juíza, pelo interesse maior da sociedade, usava uma mão dura da lei para dar um fim à onda de impunidade. Lamentavelmente, a outra mão era obrigada a soltar presos, que, em qualquer outro lugar do mundo, apodreceriam para sempre na cadeia. Esses, por ódio e vingança, puxaram o gatilho.

À juíza Patrícia Acioli, o nosso respeito e a nossa homenagem em nome daqueles que querem um Brasil menos violento.
*Presidente da ONG Brasil Sem Grades


18 de agosto de 2011 | N° 16796
LETICIA WIERZCHOWSKI


Praticando yoga

A gente fica adulto, e para de se expor a determinadas coisas. Uma amiga minha, que recentemente viajou com os filhos para uma estação de esqui, voltou dizendo: “Eu caí muitos tombos. Que maravilha cair, poder levantar e seguir em frente”. Para ela, cair na neve foi uma revelação. Adulto para de cair e, com o tempo, cair é o maior mico para a gente. Fiquei pensando nisso e, mais uma vez, agradeci à vida por ter colocado o yoga no meu caminho...

Lá no yoga, aprendi a criar uma relação totalmente nova com o meu corpo e com o meu espírito. Olhos nos pés, nariz no tornozelo, a mente limpa – o yoga é você com você mesmo, sem intermediários. O resultado disso é um corpo mais saudável e maleável, numa mente mais aprumada e leve. E alguns tombos, inevitavelmente.

Existem muitas modalidades de yoga, a que eu pratico chama-se ashtanga vinyasa yoga, conhecida por aí como “power yoga”. Depois de um ano de prática, somente agora arrisco-me a escrever umas linhas sobre o assunto – no entanto, o yoga mudou muito a minha vida, e para melhor. Porque existe um paralelo entre a prática de uma atividade física e o processo criativo (sobre isso, recomendo um ótimo livro: Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida, do japonês Haruki Murakami).

Escrever um romance é uma tarefa solitária (como no yoga, é você com você mesmo), uma tarefa longa e árdua. Requer fôlego e força de vontade. Escrever vários romances, ser um romancista, requer muito mais de tudo isso, eu diria que é uma prática bastante estoica. Não basta talento, é preciso dedicação a longo prazo, uma dedicação miúda e tenaz, às vezes até mesmo risível aos olhos alheios.

Um grande músico pode compor uma canção num momento de inspiração, numa tarde qualquer, depois de umas taças de vinho. Mas um escritor, que pode ter uma ideia genial numa tarde qualquer depois de umas taças de vinho, há de precisar de milhares de outras tardes sem álcool para dar corpo ao seu romance. Sem trabalho, sem suor, não há romance.

Mas você não precisa ser um escritor para praticar o yoga. Você só precisa sair da sua zona de conforto óbvia, e entrar nesse outro território, silencioso, sutil e recompensador. É muito mais do que aspirar e expirar, alongar, subir e descer, yoga é um processo de autoconhecimento. Não é fácil não, mas é maravilhoso. Eu já escrevi vários livros, mas ainda não consegui montar sirsasana. Mas praticar yoga é reaprender-se constantemente, e um dia eu chego lá.


18 de agosto de 2011 | N° 16796
PAULO SANT’ANA


Rumo ao paredão

Eu sou um democrata e detesto ditadura.Mas, se eu fosse ditador, tivesse todos os poderes, tomaria as seguintes medidas:

1) Mandaria fuzilar todos os donos de garagens de Porto Alegre que cobram mais de R$ 10 por hora de estacionamento;

2) Mandaria fuzilar todos os motoristas de POA que imprimissem mais de 100 km/h em seus carros, no perímetro urbano;

3) Mas, antes deles, mandaria fuzilar todos os motoristas que infernizam os que estão na frente deles na fila e a única coisa que desejam é ultrapassar com rudeza ou violência os que lhes antecedem. Fuzilaria a todos esses malditos;

4) Mandaria fuzilar todos os que falam no celular dentro do elevador;

5) Mandaria fuzilar todos os moradores de POA que jogam lixo na rua, fora dos locais coletores;

6) Mandaria fuzilar todos os que ocupam vagas de idosos e deficientes físicos nos estacionamentos;

7) Mandaria fuzilar todos os grandes cantores que, em meio aos seus shows, depois de interpretarem várias canções de compositores célebres, dizem o seguinte: “Agora vou cantar uma música de minha autoria”;

8) Mandaria fuzilar, no paredão, todos os empregadores que não dão emprego para pessoas de mais de 50 anos, para negros, para obesos, para homossexuais e para pessoas que não têm “boa aparência”;

9) Mandaria fuzilar quem criou, em plena consciência, essas intermináveis e definitivas filas de consultas e cirurgias do SUS. E a seguir fuzilaria todos os governantes que têm cacife e poder para acabar com essas filas e fingem normalidade;

10) Mandaria executar na cadeira elétrica todas as pessoas que não entenderam a piada e mesmo assim desferem gargalhadas estrondosas;

11) Mandaria enforcar todos os megalomaníacos que não têm motivo para sê-lo, principalmente os burros congênitos;

12) Mandaria fuzilar todos os políticos que têm mandato e que entram para a base aliada só para nutrir suas vantagens pessoais;

13) Mandaria executar em praça pública todo aquele que, numa conversa, não permite ser interrompido, mesmo adivinhando que quem interromper irá expender argumento mais interessante que o dele;

14) Mandaria fuzilar todos os chatos, sem exceção, inclusive a mim próprio, caso me permitisse ouvir qualquer chato por mais de três minutos;

15) Mandaria fuzilar todas as prostitutas que tivessem orgasmo e as esposas que não o tivessem e o fingissem;

16) Mandaria anistiar todas as pessoas que, depois de conhecerem meu currículo humanista, pudessem pressupor que eu seria capaz de me tornar ditador e capaz de mandar fuzilar alguém.


18 de agosto de 2011 | N° 16796
L. F. VERISSIMO


O monstro

Marx não chegou a pedir que esquecessem tudo que ele tinha escrito, mas confessou que a invenção do trem e do navio a vapor o forçavam a repensar algumas das suas teorias sobre o futuro do capitalismo.

Os seguidores de Ned Ludd, chamados luditas, trabalhadores na indústria têxtil inglesa, se revoltaram contra a invenção de teares automatizados que ameaçavam seus empregos no começo do século 19 e pregavam a destruição de todas as máquinas que substituíssem o trabalho humano.

A história social e econômica dos Estados Unidos se divide em antes e depois da massificação, pela Ford, da produção dos seus carros, que empestavam o ambiente, além de assustar os cavalos, e foram duramente combatidos.

Reações a novidades tecnológicas se repetem ao longo da História, movidas pelo medo à obsolescência, como no caso dos luditas, incompreensão ou apego ao passado. O capítulo mais recente e mais curioso dessa briga é a decisão do governo inglês de restringir o uso no país das redes sociais, que todo o mundo achava maravilhosas até revelarem um potencial subversivo que ninguém previra.

Enquanto os tuiters e os facebooks animaram as revoltas contra os déspotas e por aberturas democráticas nas ruas árabes, tudo bem. Eram as redes sociais, o produto mais moderno da engenhosidade humana, usadas para modernizar sociedades atrasadas. Mas descobriram que os quebra-quebras e queima-queimas nas ruas inglesas estavam sendo, em grande parte, também tramados na internet.

Epa, disseram os ingleses, ou o equivalente em inglês. Aqui não. Conservadores e trabalhistas se uniram para condenar a violência e o vandalismo e negar qualquer outra motivação, além de banditismo nato, para a rebelião. E todos, presumivelmente, concordaram com as medidas do governo para evitar novos distúrbios, incluindo o controle das redes sociais.

Resta saber se o controle ainda é possível. O monstro talvez não seja mais domável. Já acabou com qualquer pretensão a se manterem segredos oficiais secretos, já invadiu a privacidade de meio mundo e tornou a pornografia acessível a todas as idades e já sentiu o gosto do sucesso como instigador de revoltas – sem falar que ninguém mais consegue viver sem ele.

Agora pode não haver mais o que fazer. Se tivessem parado na invenção do trem...

quarta-feira, 17 de agosto de 2011


ANTONIO PRATA

Mudança

Do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Eles nos sobreviverão

DO FUNDO da gaveta, numa foto de 1991, minha primeira namorada me sorri. No verso, em tinta rosa, diz que me ama "pra sempre!!!". Eu também a amei para sempre e com muitas exclamações, por seis meses e alguns amassos, na distante oitava série -até um recreio em que, não lembro exatamente por qual motivo, resolvemos "dar um tempo", num canto da quadra poliesportiva.

O tempo dura até hoje. (Alguém me disse, outro dia, que ela é procuradora do Estado. Duvido que ainda use canetinhas cor-de-rosa.)

De uma pasta, surge uma prova de história sobre o feudalismo, o cartão-postal de um amigo, de Amsterdã, uma agenda de 92. Dia 23 de maio: "Niver da Ju B.!!! Não vai esquecer, hein?!". Por onde andará aquele amigo? Quem era mesmo a Ju B., hein?

Numa caixa de charuto, papéis e guardanapos cheios de projetos da última década e meia. "Revista de jornalismo literário. Arte: Ciça. Textos: Antonio, Chico, Nirla, Fred, Paulo." "Ideia de romance: paulista toma pé na bunda e cai no carnaval do Rio". "Sitcom: bar frequentado por artistas que não emplacam, tendo que sobreviver de atividades paralelas".

Cercado por aqueles achados arqueológicos, escavados de diferentes camadas sedimentares do meu apartamento, reflito sobre o que levar para a casa nova, o que jogar no saco de lixo azul. Um lado, nostálgico, agarra-se ao conteúdo das gavetas: é minha vida, meu passado, é preciso guardá-lo. Outro lado, o prático, provoca: "guardá-lo por quê? Em que situação você desenterrará as cartas de ex-namoradas, cartões-postais de quem já não vê há 20 anos, projetos que não concretizou, nem concretizará?"

Não interessa a utilidade desses fósseis, digo à minha sanha sanitarista: é dos momentos representados por eles que somos feitos. "Pois o feito, feito está", retruca o pragmático: "todo o conteúdo dessas gavetas não são mais que andaimes de teu edifício. Para que preservá-los?"

Ora -defendo-me-, e do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Aliás, eles nos sobreviverão. Vão-se os dedos, ficam os anéis, eis a triste verdade. O utilitarista insiste, agora com arroubos de sarcasmo: "Exato!

E se mesmo você uma hora será descartado, de que valerão todos esses bricabraques?".

Ah, inclemente faxineiro! Não percebe?! É justamente a certeza de que nos vamos que obriga a nos agarrarmos ao que fomos! "Você está se repetindo", diz o chato. "Já escreveu isso em outra crônica, dia desses." Pouco me importa. A repetição não é necessariamente um defeito. Veja Woody Allen. Nelson Rodrigues. Vonnegut. Rubem Braga.

Só temos duas ou três coisas a dizer sobre a vida e as vamos reconfigurando, polindo, tentando clareá-las ao longo do tempo. Para isso, aliás, servem esses andaimes, cacarecos recolhidos nas andanças: pontuam o caminho, amenizam a falta de sentido da linha de chegada.

Decido: levarei tudo comigo. De madrugada, o caminhão de lixo mastigará apenas os canhotos dos talões de cheque, velhas contas de luz e declarações do imposto de renda. Amores eternos, mesmo os mais fugazes, amigos que perdemos e os sonhos antigos devem permanecer sempre conosco: senão no fundo do coração, ao menos no fundo de uma gaveta.

antonioprata.folha@uol.com.br

FERNANDO DE BARROS E SILVA

A solidão de Dilma

SÃO PAULO - Os gestos de Dilma Rousseff para inibir e controlar um pouco a corrupção não encontram eco no meio político em geral, o que é sabido, mas tampouco têm o respaldo do PT, o que é menos falado.

Quem, no partido da presidente, abraçou em público, se não a causa, ao menos o discurso da faxina? Talvez Eduardo Suplicy, o eterno Rousseau do PT, levante a mão, solitário e sorridente. A solidão que chama a atenção, porém, é a da própria Dilma, desamparada pelo partido, que -diga-se- nem dela é.

O PT não se deixa mobilizar pela moralização da política, em primeiro lugar, porque é sócio majoritário do sistema que aí está, do qual Lula foi (ou ainda é) o grande fiador.

Desde que chegou ao poder, em 2002, o partido encontrou basicamente duas maneiras para ser aceito como "um dos nossos" pelo establishment: distribuiu dinheiro para banqueiros e tolerou vícios fisiológicos e esquemas de corrupção enraizados no sistema político, muitas vezes participando deles.

Além disso, depois do mensalão, o PT percebeu que a "agenda ética" tem impacto residual na base da sociedade. E soube tirar dividendos da máxima brechtiana: primeiro vem o estômago, depois a moral.

Diante de evidências de corrupção à sua volta, Lula tratava de atacar a "mídia burguesa" para sair em defesa de seus corruptos. Buscava deslegitimar a acusação para proteger os ladrões aliados, como se tudo não passasse de mais uma reedição do golpismo udenista contra o pai dos pobres -Getúlio ou ele. Dilma não age assim. Não é de espantar, também por isso, que o PT se sinta mais confortável com Lula.

O apoio suprapartidário na cruzada pela ética que a presidente recebeu anteontem de nove senadores tem algo de quixotesco. A causa é nobre, mas encampada pela turma de Pedro Simon e Cristovam Buarque assume ares românticos e sonhadores, de quem parece meio descolado da realidade. Os neoamigos de Dilma são o reflexo involuntário da sua solidão na Petelândia.


17 de agosto de 2011 | N° 16795
MARTHA MEDEIROS


A arte da manutenção

Bem que eu gostaria de dizer que esta crônica foi inspirada em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, livro de Robert M. Pirsig que, encantada, comecei a ler aos 24 anos e que nunca terminei. Estava adorando e, de repente, cadê o livro?

Emprestei, me roubaram ou esqueci no ônibus. Só sei que o perdi. Um dia retomarei essa leitura, não de onde parei, óbvio, e sim desde o início – minha memória não dá pra mais nada, só reciclando.

Então, como ia dizendo, não me inspirei nesse clássico da filosofia moderna, o que me conferiria certo charme, e sim em fuleiras notinhas de rodapé que se repetem sem que ninguém dê a mínima: cinco feridos em carrinho de montanha-russa, casal despenca da roda-gigante, adolescente atingida por um brinquedo que se desprendeu. Os parques de diversões não estão pra brincadeira.

A responsabilidade é de quem? De quem deveria zelar pela manutenção, mas ninguém está nem aí. Inaugura-se o parque, o tempo passa, tudo enferruja, o equipamento se corrói e salve-se quem puder.

Não resisto à tentação de comparar. Você me conhece. Vou comparar. É ou não é o retrato da maioria das relações?

No começo, tudo parque de diversão. Frio na barriga, vertigem, gritinhos. Depois, acostuma-se, o medo passa, a excitação também. Ninguém mais vê graça na coisa, mas, sabe como é, acostumamos, vira hábito, todo sábado à tarde, toda quarta à noite, os amigos estimulam, vamos lá, vamos lá, até que um se esborracha no chão.

Entre dolorida, surpresa e indignada, a vítima se pergunta: o que é que aconteceu? Os responsáveis pelo parque não zelaram pela segurança, apenas isso, e, como alertei, não estou falando apenas de parques, mas também de casamentos, paixões, amizades, o prazer maior da vida.

Era pra ser divertido pra sempre, empolgante pra sempre, inspirador pra sempre, mas a maioria acredita que a longevidade dos amores é atribuição do destino, ele é que tem que tomar conta.

Nenhum encantamento se mantém sem uma boa supervisão. Não basta dar corda e depois cruzar os braços. Não dá pra apertar o botão e depois sair para tomar um lanche. Não se pode confiar na sorte. A engrenagem não se autolubrifica sozinha, os movimentos não se renovam no automático e o tempo não faz mágica. Diversão, como tudo na vida, também exige cuidado.

Mas quem é que tem paciência para o zelo, de onde tirar disposição para renovar o suspiro mil vezes reprisado? Começa maravilhoso, depois fica legal, aí legalzinho, até o “larguei de mão, cansei”.

Manutenção. Talvez eu tenha extraído aqui, por resquícios indeléveis da memória, alguns substratos do emblemático livro de Robert M. Pirsig, mas o assunto ainda é parque de diversões (os reais e os metafóricos), e o perigo que os ronda quando decaem.


17 de agosto de 2011 | N° 16795
ARTIGOS - Eduardo K. M. Carrion*


Direito a boa administração

O direito a boa administração já constitui direito consagrado em sistemas jurídicos nacionais e também no ordenamento internacional. A título de exemplo, neste último caso, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, que, em seu Capítulo V, referente à cidadania, prevê expressamente, entre outros, o direito a uma boa administração (Artigo 41).

Direito fundamental da sociedade e do cidadão a uma administração que tenha como atributos e aja com legalidade, legitimidade, imparcialidade, impessoalidade, moralidade, motivação, qualidade, racionalidade, objetividade, coordenação, economicidade eficácia, eficiência, publicidade. Trata-se de um direito para a sociedade e o cidadão e de um dever para a administração pública.

No Brasil, a Constituição de 1988 reconhece, no essencial, o direito a boa administração. Assim, os artigos 37, “caput”, e 70, “caput”. Entretanto, a prática institucional tem, em grande parte, conspirado contra a boa administração. O denominado presidencialismo de coa- lizão, eufemismo, muitas vezes, para um presidencialismo de corrupção, tem significativamente elevado o custo da governança para a sociedade e o cidadão.

Se considerarmos alguns aspectos de má administração como corrupção, que hoje, no Brasil, não respeita fronteiras partidárias e ideológicas; má aplicação ou desperdício de recursos públicos; ineficiência, aí incluído o excesso de cargos em comissão, provavelmente chegaremos a uma sobretaxa de aproximadamente um terço da carga tributária a pesar sobre a sociedade e o cidadão, atingindo diretamente a atividade produtiva, reduzindo as políticas públicas na área social e criando, em consequên-cia, pobreza, marginalidade e miséria.

Sem falar nos prejuízos de ordem ética e moral, esgarçando a solidariedade social. Muito já se fez, mas muito falta ainda fazer para encarar esta situação.

Os órgãos oficiais de fiscalização e de responsabilização, até por carência de pessoal e de recursos materiais suficientes, também por falta de instrumentos jurídicos adequados, enfrentam inúmeras dificuldades. Os meios de comunicação têm, neste particular, exercido uma função pública supletiva, através do jornalismo investigativo. A indignação popular, por sua vez, cobra compromissos e estimula atitudes. Assim, embora cambaleando, procuramos caminhar para frente.

*Professor titular de Direito Constitucional


17 de agosto de 2011 | N° 16795
PAULO SANT’ANA


A síntese do aborto

Preciso hoje expor minha ideia sobre o aborto, tema que tem atraído tanto a atenção dos pensadores.

Se o leitor ou a leitora não concordar comigo, peço que tolerem.

Sou completamente contrário à ideia de que a mulher grávida é dona do feto contido no seu ventre e pode fazer o que bem entender dele, inclusive abortá-lo.

Tanto não é dona do seu feto, que, geneticamente, o feto pertence a ela mas também ao pai que entrou com o espermatozoide nesse consórcio.

Penso até que a única exceção para o não direito da mulher de abortar seu feto é o caso do feto anencéfalo.

Se o feto não tem cérebro, concluo que não só a mulher grávida tem o direito de abortá-lo, mas esse direito também assiste ao Estado, que tem o dever de promover o aborto para evitar a tragédia de um ser vivo sem dominância cerebral.

A mulher grávida não é, como se diz, dona do seu corpo e pode fazer dele o que bem entender, inclusive abortar.

Ela não é dona do feto, ela é apenas hospedeira. E o feto é seu inquilino. Para ser despejado, terá esse ato que obedecer a várias leis jurídicas e morais.

O meu entender, portanto, é que a mulher não é dona do feto, faz apenas o papel de senhoria dele.

A saudação mais usada entre as pessoas, quando se encontram, não é “olá”. A saudação mais usual entre pessoas que se encontram é: “Tudo bem?”.

E, quando todos me perguntam se está tudo bem, respondo de forma surpreendente: “Tudo mal”.

Eles pedem explicação para minha resposta que lhes parece brutal e eu dou a explicação.

Não sei ser hipócrita, se não vou bem, como irei dizer que está tudo bem?

Nada disso. Vai tudo mal. Se tenho câncer e por isso não tenho saliva, não tenho apetite e nem paladar, como pode ir tudo bem? Vai tudo mal, sim, senhores.

Não sei mentir, nem para salvar conversas, diálogos ou formalidades.

O caso da juíza que foi assassinada no Rio de Janeiro com 21 tiros.

Agora na imprensa, há uma tentativa de desqualificar a vítima, alegando que ela tinha uma união estável com um cabo da PM e já vivera certa vez com um policial civil.

Ao tentarem, essas pessoas, desqualificar a vítima, não percebem que assim estão desculpando os assassinos.

E que crime ou desdouro comete uma juíza que é mulher de cabo de polícia e de investigador?

Pelo amor de Deus, o que tem de ser exaltado é a coragem e lucidez dessa juíza assassinada por ter condenado inúmeros policiais e milicianos de vida torta.

Mas que burrice!


17 de agosto de 2011 | N° 16795
DIANA CORSO


Carta aos futuros pais

Quando era pequena gostava de imaginar que aquele a quem um dia amaria estava em algum lugar, apenas ainda não nos conhecíamos. Havia nessa fantasia uma ideia de predestinação otimista, não queria supor acasos que me condenassem à solidão.

Acreditava que o que era meu estava reservado, quando fosse a hora “ele” chegaria. Na verdade tratava-se de uma fantasia de esperança baseada na experiência: meu pai faleceu quando eu ainda era um bebê e até meus seis anos passei achando que um dia chegaria um pai, que era como um príncipe-encantado, que tanto desejava ter.

Afinal ele chegou e nosso encontro deu certo. Quando partiu, bem velhinho, deixou-me a memória de uma paternidade legítima. Disse isso a ele em todos os dias dos pais que tivemos e ainda sinto falta de fazê-lo agora. Desta vez dedico a outros futuros pais meu otimismo, os votos de que outros tenham a sorte que eu e ele tivemos.

Muitos que se tornarão pais e filhos já existem em algum lugar, mas ainda não se conhecem. São crianças que perderam suas famílias, nunca tiveram uma, ou foram afastadas de maus tratos e situações de abandono. São pais que encaminharam os papéis de adoção e esperam por um encontro. Entre estes, além dos casais que enfrentam problemas de fertilidade, há ainda outras configurações familiares que incluem famílias monoparentais, casais gays, maternidades e paternidades tardias.

A função parental não é viabilizada por hormônios, nem pela capacidade da lactação ou acionada nos pais pela aparição de seus traços na criança. Sem um desejo que sustente o lugar de pai e mãe não há nada no mundo que viabilize uma família.

Se um nascimento não passar de um descuido, um acaso irresponsável, um arrebato que não se sustenta, só assistiremos a desencontros e tristeza. Após a gestação e o parto sempre é necessário que pais e filhos se adotem uns aos outros. No reino da reprodução humana a natureza garante muito menos do que gostaríamos de crer.

Nossa sociedade fez da família nuclear clássica uma espécie de fetiche. Na teoria, pois na prática várias mudanças aconteceram. Testemunhamos histórias de arranjos diferentes e bem sucedidos, através das quais compreendemos a riqueza de possibilidades da relação de pais e filhos. Aliás, toda tentativa é bem vinda, pois a existência de famílias de propaganda de margarina nunca impediu que pais e filhos encontrassem destinos trágicos e infelizes.

Pelo que vivi, por tudo isso que fomos aprendendo, desejo a todos os pais e filhos que ainda não se conheceram um futuro feliz dia dos pais!

quarta-feira, 8 de junho de 2011



08 de junho de 2011 | N° 16724
MARTHA MEDEIROS


Quebrando o Tabu

Não assisti ao documentário Quebrando o Tabu, mas pretendo fazê-lo o mais breve possível, já que discute um assunto que interessa a todos: o combate às drogas. Ainda não tenho opinião fechada a respeito.

Simpatizo com a descriminalização (que de certa forma já está em curso: os usuários não são mais presos), mas tenho dúvidas quanto a liberar o comércio da maconha. Havendo rigor na regulamentação do uso (zero propaganda, nenhuma glamorização, rígida restrição aos locais de consumo, apreensão definitiva da carteira de motorista para quem for pego dirigindo sob efeito da droga etc.), a liberação poderia até ser benéfica, uma vez que afastaria o usuário do traficante e desaqueceria o mercado ilegal.

Por outro lado, não se pode prever as consequências quanto ao incremento do hábito junto àqueles que ainda não o possuem: o fato de não ser mais proibido atrairia novos adeptos? Desconfio que não com significância, mas vá saber.

É um assunto ainda muito movediço.

O que se sabe é que proibir não inibe o consumo e que o tráfico é responsável pela criminalidade assombrosa do país. E assim continuará enquanto não se enfrentar o tema com objetividade, sem dar espaço para preconceitos ou alarmismos.

Na falta de um consenso, só nos resta seguir chamando a atenção de nossos adolescentes para o tamanho do estrago que a droga pode provocar. Enquanto estive em férias, aconteceu um crime estúpido no litoral do Estado, provocado pela passionalidade do assassino, mas em que a droga teve um protagonismo evidente. Quem era o cara? Visto de fora, tudo o que um garoto deseja ser: bonito, esportista, rico, valentão. Mas de forte não tinha nada, ou teria sabido conduzir a vida de forma mais saudável e inteligente.

O surfe é o esporte fetiche de uma garotada que tem ao seu dispor, só aqui no Brasil, uma orla de cerca de 8 mil quilômetros de extensão. Praia, mar, ondas, meninas bonitas em volta, tudo faz parte de uma grande fantasia, mas o luau parece incompleto se não rolar um baseado para coroar o clima havaiano. É preciso acabar com essa caricatura. Uns conseguem fumar seus baseados na adolescência e depois fazer o rito de passagem para a vida adulta sem levar adiante o hábito, ou levando-o sob total controle.

Outros não conseguem, não têm esse autodomínio e colocam tudo a perder. São pessoas com um profundo vazio existencial que precisam de uma bengala a vida inteira, e uma bengala cada vez mais potente para lhes suportar o peso.

Migram para drogas mais corrosivas e aí, um dia, com o cérebro carcomido, cometem barbaridades. Que se aproveite essa tragédia lamentável que aconteceu num universo tão aparentemente sadio e tão idealizado para que se caia na real. Por enquanto, a única maneira concreta de combater as drogas é não usá-las.