domingo, 21 de agosto de 2011


FERREIRA GULLAR

Em time que está ganhando...

E logo me ocorreu a hipótese de que se trata de pôr em prática o princípio abstrato de liberdade...

Li com espanto, algumas semanas atrás, que o prefeito do Rio, Eduardo Paes, pretendia retirar as grades que cercam algumas praças da cidade. Mas por que isso -me perguntei- se essas praças se tornaram, depois que puseram as grades, locais tranquilos e limpos?

E logo me ocorreu a hipótese de que se trata de pôr em prática o princípio abstrato de liberdade... Essa é uma expressão que cunhei para definir uma nova mania que se instalou na cabeça de alguns e que pode ser definida como a eliminação total de qualquer medida restritiva a qualquer coisa.

Voltamos aos anos 70, quando se inventou o lema "é proibido proibir". Menos explicitamente, adota-se a mesma atitude em face de tudo o que pareça cerceamento ou repressão. Assim, há quem se oponha a que a prefeitura do Rio recolha meninos que fumam crack na rua.

O argumento é que são levados, contra sua vontade, para lugares onde não há assistência médica de qualidade, nem terapeuta, nem... Conclusão: melhor mesmo é deixá-los na rua, gozando de plena liberdade. Imagino que alguém meteu na cabeça do prefeito que praças cercadas são antidemocráticas...

Sabem por que penso isso? Porque, décadas atrás, quando o prefeito de então decidiu cercar as praças com grades, logo surgiram os defensores do princípio abstrato da liberdade para alegar que aquilo era contra o direito de ir e vir e, logo, atentava contra a liberdade dos cidadãos.

Agora vejam vocês, eu que moro aqui em Copacabana, perto da praça Serzedelo Corrêa, fiquei estarrecido: a praça havia se tornado um valhacouto de vagabundos, mendigos, drogados e assaltantes.

Ninguém usava a praça para nada. Levar crianças para brincar ali, nem pensar. Só os desavisados se atreviam a cruzar a praça certas horas, particularmente depois que anoitecia. O mesmo se podia dizer da praça do Leme, que fica algumas quadras adiante.

Apesar dos protestos, o prefeito não voltou atrás e mandou cercar as praças com grades, com amplos portões que permitem o livre trânsito das pessoas. Graças a isso, elas voltaram a ser áreas de lazer, hoje frequentadas particularmente por crianças e idosos.

A praça do Leme, por onde passo com frequência, tornou-se um lugar tranquilo, onde o pessoal se reúne para conversar, jogar dama e xadrez, enquanto as crianças correm e brincam alegremente.

A praça Serzedelo, a mesma coisa. Já cansei de cruzá-la à noite sem nenhum temor. Nem se tem notícia, em todos estes anos, de qualquer assalto ocorrido ali. Então, cabe perguntar: por que acabar com o que deu certo e voltar à situação anterior, que deu errado?

Um dos argumentos usados para retirar as grades das praças é que isso já tinha sido feito na praça Tiradentes, com ótimo resultado. Li essa notícia e não me convenci, já que ando pela cidade e vejo mendigos espalhados por todo canto, deitados nas calçadas em ruas de menor movimento.

Aqui, na minha rua mesmo, nos fins de semana, quando o comércio está fechado, várias calçadas são ocupadas por pessoas que ali dormem em cima de plásticos ou colchões velhos, que carregam consigo.

Só não se instalam definitivamente ali porque, ao recomeçar a semana, as lojas abrem e eles são obrigados a sair. Mas, nas praças, não há lojas, a área é ampla, o policiamento precário, e por isso eles ali se instalam definitivamente. E é o que já está acontecendo na praça Tiradentes: ao contrário do que afirmavam os defensores do princípio abstrato da liberdade, os mendigos tomaram conta da praça, poucos dias depois de retiradas as grades.

Sei que o prefeito Eduardo Paes tem espírito público, trabalha para melhorar as condições de vida na cidade. Quando escrevi aqui a respeito de uma rua no bairro de Anchieta, zona oeste do Rio, que se tornara um buraco só, ele me telefonou e se dispôs a mandar consertá-la.

Isso faz talvez um ano, mas a obra foi feita e a rua está praticamente pronta, asfaltada, com as instalações de água e esgoto recuperadas.

É verdade que um vereador cara de pau -que nestes 20 anos nem sequer reparara na buraqueira da rua- já estendeu ali uma faixa se dizendo autor do milagre. Mas isso pouco importa, há gente para tudo, particularmente no campo da política. Importa é que se faça o que deve ser feito, visando o bem-estar e a segurança das pessoas.

GILBERTO DIMENSTEIN

Pobreza emburrece?

Einstein nascido miserável, sem apoio para aprender, até seria inteligente, mas dificilmente um gênio

PARA QUEM estuda o cérebro, a resposta da pergunta que está no título é sim: a pobreza emburrece.

Apenas metade da inteligência de um indivíduo pode ser explicada pela herança genética, segundo estudo divulgado neste mês pela Universidade de Edimburgo, que envolveu cientistas de diversos países. O restante da composição do QI vem do ambiente em que se vive e dos estímulos educacionais recebidos desde o berço.

Simplificando: um Einstein nascido na miséria, sem apoio para aprender, até seria inteligente, mas dificilmente um gênio. Alguém com potencial de ter uma alta inteligência torna-se apenas mediano. É como se um músculo deixasse de ser desenvolvido.

Chegou-se a essa conclusão depois de testes laboratoriais com 3.118 pessoas espalhadas pelo mundo. Imaginava-se que as forças externas seriam bem menores na formação do QI. Tradução: inteligência é uma habilidade que, em boa parte, se aprende, depende da família e das oportunidades na cidade.

É um ângulo interessante para ver a parceria, anunciada na quinta-feira, entre a presidente Dilma Rousseff e os governadores da região Sudeste de unificação de seus programas de complementação de renda para combater a pobreza, batizado de Brasil sem Miséria.

Menos miséria acarreta mais inteligência?

A pesquisa dos neurocientistas ajudou-me a ver por outro ângulo um dos projetos mais emocionantes que conheço (Ismart) no Brasil: jovens de baixa renda, a maioria deles vindos de comunidades pobres, são escolhidos e preparados para estudar em escolas de elite.

Quase todos eles costumam entusiasmar seus professores porque, apesar da adversidade extrema (muitos passam parte do dia no trajeto de ônibus até a escola), conseguem recuperar a cada ano o tempo perdido. Logo estão no mesmo nível de aprendizagem de seus colegas mais abastados e até os superam, entrando nas melhores faculdades.

Conheci vários desses jovens e tendia a atribuir sua performance à garra, a uma inteligência acima do normal, tudo isso, é claro, favorecido por escolas de qualidade.
O que impressiona a todos é a rapidez da evolução. O que aquela pesquisa da Universidade de Edimburgo traz é a suspeita de que, com tantos estímulos, desafios e apoio, a taxa de QI possa ter sofrido um upgrade -afinal, nessa fase o cérebro ainda está em formação.
É, por enquanto, apenas uma especulação.

O que não é uma especulação é o caminho inverso, mostrando a relação entre pobreza e aprendizagem. Com apoio do Unicef, o Cenpec analisou, desde o ano passado, 61 escolas de de São Miguel Paulista, região da periferia da cidade de São Paulo. Já sabemos que, em geral, quanto mais pobre um bairro, pior tende a ser a nota dos alunos.

Mas essa investigação foi mais longe. Analisou as escolas de uma mesma região, comparando alunos com semelhante posição socioeconômica. Detectou-se uma expressiva diferença segundo as peculiaridades de cada território, especialmente a oferta de serviços públicos em cada um deles.

Nos lugares com menos serviços públicos, as demandas sociais tendem a sobrecarregar mais as escolas e, com isso, afastam ainda mais os professores e as famílias que têm maior repertório cultural. Nesses locais, há menos oferta de creche e pré-escola, retardando o processo de aprendizagem.

Esses programas da renda mínima unificados (acertadamente) por Dilma e os governadores têm como contrapartida a permanência dos alunos nas escolas. Mas a subida da renda, a julgar pelas descobertas da pesquisa do Cenpec, será limitada à aprendizagem dos alunos se não houver um investimento e articulação nos territórios.

Nem será justo que se avaliem essas escolas com padrões semelhantes aos das demais, já que os professores, mesmo os mais capacitados, terão uma margem de manobra limitada.

Programas como o Bolsa Família são um bom exemplo de política para a redução da miséria. E, por isso, têm um efeito eleitoral, mas terão um baixo impacto educacional caso não se perceba o território como uma extensão da sala de aula.

Não pensar na educação como uma linha que passa pela família, pela escola e pela comunidade é falta de inteligência pública.

PS- Por falar em políticas públicas e territórios, será lançado no começo de setembro um aplicativo para celular por meio do qual as pessoas poderão, em tempo real, relatar suas impressões sobre a cidade. Gera-se, no final, um mapa das percepções de toda a cidade e seus problemas rua por rua.

Desenvolvido pelo Movimento Mais Feliz, comandado pelo publicitário Mauro Montorin, o projeto deve ser encampado pelo Facebook para ter amplitude internacional.

gdimen@uol.com.br

DANUZA LEÃO

Acelera, Dilma

Em sua nova fase, Dilma deveria apontar seu dedo ameaçador aos políticos que só pensam em emenda

A PRESIDENTE está surpreendendo. Sua fama era de competente e durona, mas de não saber fazer política, ser incapaz de negociar.
Pois a "saída" do ministro da Agricultura foi uma surpresa.

Ela conseguiu o que queria -se livrar de Wagner Rossi-, na moral, sem precisar bater de frente com o PMDB. Palmas para ela, e vexame para sua "base de apoio"-aliás, apoio a eles mesmos-, cujos deputados sumiram quando souberam do desfecho.

Em seu discurso de posse, a presidente estendeu a mão à oposição, coisa que há oito anos não acontecia; agora, dez senadores (só dez!) -todos de reputação inatacável- fizeram um gesto em direção a Dilma, oferecendo a ela apoio, para que a faxina continue.

Aceite, presidente; é uma boa hora para fazer novas amizades e se firmar como grande brasileira.

Nos encontros que tem tido com Lula, em diversas bases aéreas do país, imagino os conselhos que Dilma recebe. A governabilidade acima de tudo etc. etc., e 2014, claro.

A presidente parece obediente, mas sabe muitíssimo bem o que é certo e o que é errado, seu mestre foi Brizola; será que algum dia sonhou que teria que se reunir com Michel Temer e José Sarney, para "sentir" se podia ou não demitir um ministro apadrinhado por eles?

Afinal, não foi para isso que Dilma abriu mão de sua juventude, que foi presa e torturada.

Seu dever de lealdade é, em primeiro lugar, para com os que a elegeram, e só depois a Lula, isso se achar que deve; afinal, a presidente é ela, eta herança mais maldita.

Ela não precisou dar um murro na mesa para se livrar dos dois ministros que já se foram; ainda faltam alguns, é verdade, mas ela é mineira, tem paciência para esperar a hora certa. Caindo o terceiro ministro desta leva, que está quase, Dilma podia aproveitar o embalo e diminuir o número de ministérios, começando pelo da Pesca, que não dá para entender.

Com os acontecimentos da semana, a próxima pesquisa deverá ser mais favorável, e em sua nova fase ela deveria apontar aquele seu dedo ameaçador diretamente aos políticos que só pensam nas emendas, as famosas emendas.

Depois do deslumbramento inicial, aliás compreensível, fantasio que às vezes Dilma pense "por que eu fui me meter nessa?"

Cercada pela sua falta de experiência política, e vigiada de perto por Gilberto Carvalho, que dá os recados de Lula, sua vida não deve ser fácil.

Aliás, o que teria feito Lula com essa crise nos ministérios? Faria um discurso bem popular, esbravejando, como sempre, e diria que a culpa era toda da imprensa. Aliás, é bom lembrar que, se não fosse a imprensa, Palocci ainda seria o ministro mais poderoso do governo.

Estou começando a confiar mais em Dilma, e adoraria poder elogiar coisas que ela faz mais vezes, muitas vezes. Mas vamos combinar: cada vez que ela fala, é um desastre; decididamente, nossa presidente não nasceu com o dom da palavra.

E nem precisa; basta fazer o que deve, o que é certo.

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Tucanos caem como patinhos

BRASÍLIA - As fotos de Dilma com Fernando Henrique, Geraldo Alckmin e Antonio Anastasia dizem muito -sobretudo da estratégia dilmista de se descolar de escândalos e escandalosos e se aproximar da oposição e de independentes.

Dilma, que não é PT na origem e na alma, tem problemas na base aliada, com o malcriado PR articulando operação-padrão com PTB, PP, PSC e setores do PMDB. Mas o que é melhor: uma foto com Alfredo Nascimento e os quase 30 demitidos dos Transportes ou com FHC, Alckmin e Anastasia? O apoio caríssimo de Wagner Rossi ou um elogio de Jarbas Vasconcelos, Pedro Simon e Cristovam Buarque?

A presidente já tinha trocado gentilezas com FHC na festa da Folha, foi justa e carinhosa numa carta de aniversário para ele, ofereceu-lhe vaga à mesa de Barack Obama no Itamaraty. Tudo isso é bom, republicano, mas é preciso avaliar perdas e ganhos.

O aparato marqueteiro que Dilma herdou de Lula não dá ponto sem nó: a solenidade do Brasil sem Miséria com o tucanato foi justamente em São Paulo, coração do PSDB e do seu eleitorado.

E o aparato político cuida da aritmética no Congresso: o PR faz beicinho? Chama o PSD! Dilma se reuniu com Kassab em Brasília no mesmo dia da festinha com tucanos em São Paulo. Coincidência...

Assim, enquanto se discute se Dilma faz mesmo uma "faxina ética", ou apenas deixa rolar e se beneficia dela, a presidente vai virando estrela de uma frente pluripartidária contra a corrupção e contra a miséria. Só tem a ganhar. CPI da Corrupção? Esquece.

Lula virou "pai dos pobres", e Dilma se firma como "mãe anticorrupção". O PSDB corrobora alegremente, e assim ela vence resistências entre os 40 milhões que votaram na oposição, contra Lula e o lulismo. Por trás do discurso de que o Brasil sai ganhando, a oposição não lucra nada, Dilma fica com tudo. E Dilma é Lula.

PS - Até 13 de setembro!

CARLOS HEITOR CONY

Metástase

RIO DE JANEIRO - A imagem é mais do que sovada: de tanta corrupção que funciona como um câncer no organismo da nação, penetramos naquele estágio quase terminal da metástase. Não é um órgão, o baço, o fígado, o pulmão, o seio ou a pele que contraíram o tumor maligno: ele se espalhou e sua cura é cada vez mais problemática -se é que há cura radical para isso.

Dona Dilma deu azar. Geralmente no período que é considerado como a lua de mel do governante sempre aparecem problemas, alguns graves, mas a corrupção só começa a fazer estragos letais da metade para o fim do mandato.

Bem preparada, movida por ótimas intenções e lubrificada por apoios consideráveis, Dilma possui todas as condições para executar o seu programa de governo, alguns dos quais estão se iniciando, mas de forma confusa.

Numa reunião com a cúpula do governo, propõe e recebe propostas para erradicar a miséria, mas o telefone toca: alguém a avisa que o secretário-executivo de tal ministério está sendo preso pela polícia por alta corrupção. A ela só compete, inicialmente, pedir que não usem algemas, até que tudo seja apurado

A erradicação da miséria no país se transforma na erradicação das algemas. A reunião acaba brutalmente, cada qual vai examinar a própria consciência para ver se poderá ser o próximo.

A mídia e a internet estão congestionadas de mensagens e protestos contra a calamidade. Mas é pouco. Pensando nisso, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) está propondo marchas populares nas principais cidades, fazendo a voz das ruas chegar aos escalões responsáveis. Foi assim no caso do impeachment de Collor.

E foi justamente a ABI, dirigida na época por Barbosa Lima Sobrinho, ao lado de Lavenère-Wanderley, então presidente da OAB, que botaram os caras-pintadas nas ruas. Todos sabemos o resultado.

sábado, 20 de agosto de 2011



21 de agosto de 2011 | N° 16799
MARTHA MEDEIROS


E um dia você envelheceu

Em que momento você se dá conta de que está mais perto do fim do que do começo? Se esta crônica fosse um teste de revista, poderia ajudá-lo a descobrir se está mesmo ficando velho. Basta que tenha dito as seguintes frases com alguma assiduidade nos últimos meses:

a) Não enxergo mais nada sem meus óculos.

b) Como é mesmo o nome daquele programa de tevê de que a gente gostava?

c) Eu jurei que tinha deixado a chave do carro aqui.

d) Vai ter lugar pra sentar?

e) Não tenho mais paciência para ler autores novos, agora só me dedico aos clássicos.

f) Nunca ouvi falar dessa banda. Dessa outra também não.

g) Com essa chuva, prefiro ficar em casa.

h) Com esse calor, prefiro ficar em casa.

i) Quem viu um, viu todos.

j) Dois cálices agora é o meu limite.

k) Tem escada rolante?

l) Com essa noite linda e estrelada, prefiro ficar em casa.

Você se reconhece em pelo menos metade dessas afirmações? Pegue sua bengala, coloque seu aparelho de surdez e ouça: bem-vindo ao clube. Eu disse BEM-VINDO AO CLUBE! Pois é. Ao Clube dos Matusaléns que não parecem ter mais do que 40 anos, mas é só aparência, por dentro a alma já está andando de graça nos ônibus e frequentando fila especial no banco.

Na verdade, os esquecimentos e a preguiça nunca abalaram a minha autoestima. Troco o nome das pessoas desde que me conheço por gente e nunca fui de noitada, ficar em casa já era meu programa preferido aos 17 anos.

Ainda assim, tenho a cara de pau de dizer que mantenho o espírito cada vez mais renovado. Só me sinto meio caquética quando, ao ler uma entrevista de um cineasta famoso, ou de um empresário famoso, ou de qualquer pessoa famosa, descubro o ano em que eles nasceram: 1978. 1981. 1989. O quê?? Só pode ser erro de revisão.

Em 1978 eu estava me preparando para o vestibular, em 1981 eu já ganhava salário, em 1989 eu tinha três livros publicados, enquanto que os notáveis de hoje estavam em um berçário fazendo gugu-dadá.

E agora eles são capas de revista, profissionais respeitados, com família constituída e investindo em plano de aposentadoria. São adultos realizados que nasceram quando eu já era adulta. Humm. Então eu sou o que hoje?

A idade pesa quando descubro que quem nasceu bem depois de mim já está se queixando dos cabelos brancos. Só não me sinto totalmente humilhada porque quem estiver nascendo neste 21 de agosto logo vai estar dando entrevista e os fazendo enfrentar o mesmo estupor. Como assim, nascido em 2011 e já presidente de empresa? Ninguém escapa desse susto.


21 de agosto de 2011 | N° 16799
ARTIGOS - Moisés Mendes*


Maria Madalena e Patrícia Acioli

Maria Madalena, a que seguia Jesus, testemunhou a crucificação e depois o viu ressuscitar, é o mais bem-acabado ícone de uma difamação. Você sabe o que falam dela. Maria Madalena teria sido uma prostituta que decidiu seguir o salvador para se purificar.

A Bíblia, que se lê como quiser, nem em suas linhas mais labirínticas insinua que Maria Madalena se prostituía. Mas de onde tiraram a ocupação da moça? E daí, se era prostituta?

Se não sabemos os culpados, que se dane a vítima. Maria Madalena poderia ser um dos mitos intocáveis do cristianismo. Ela ofereceu a prova de que Jesus seria o filho de Deus, ao vê-lo sair do túmulo e voltar a andar. Ficou por aí como uma louca, uma coitada, uma mulher avulsa. Mulheres que se metem onde não devem são um mal bíblico.

A juíza Patrícia Amorim, assassinada com 21 tiros ao combater as máfias do Rio, é a nossa mais nova Maria Madalena. Você sabe o que falam de Patrícia. Era valente, sim, mas metia o dedo na cara dos policiais que viraram bandidos. Não se enquadrava nas liturgias da magistratura.

Namorou um cabo da polícia militar que lhe servia de escolta. Apanhava do cabo. O policial seria de uma facção adversária das milícias condenadas pela juíza. Dizem mais de Patrícia. Ela sabia que o cabo era torto, então também ela era torta. Dá para confiar numa juíza assim? De onde tiraram tudo isso? Do que se ouviu dizer, do que saiu de forma fragmentada na imprensa e da imaginação dos difamadores. Sai da boca de quem nos rodeia.

Patrícia poderia ser nossa heroína real, como contraponto civilizado ao capitão Nascimento, nosso herói primitivo de cinema. Iniciamos a destruição da memória de Patrícia no dia seguinte a sua morte, porque não nos consideramos merecedores do seu atrevimento. É nossa autoflagelação. A coragem da juíza não cabe na nossa acomodação. Vamos debater seus defeitos. Se nada sabemos dos assassinos, nos dediquemos à dissecação da vítima.

Você vai saber mais das “fraquezas” da juíza e é quase certo que não saberá quase nada dos criminosos. Matando Patrícia todos os dias, com nossos trabucos morais, nos livramos de um desconforto. O que vamos fazer dessa mártir imperfeita? Por que lidar com uma heroína que não entendemos, se temos heróis – e masculinos – menos complexos? A juíza estaria no lugar errado, assim como Maria Madalena não tinha que se meter com aqueles cabeludos. Não há como enfrentar métodos seculares de difamação.

No listão de vestibulandos aprovados pela UFRGS no ano passado, há centenas de Lucas, Marcos, Tiagos, Mateus, Joões, Josés. Há 29 Marias – Marias de Fátima, Marias Cristina, Isabel, Aparecida, Eduarda, etc., mas nenhuma Maria Madalena. Tenho ciúme de quem batiza uma filha com o nome de Maria Madalena.

Se a moça bíblica foi prostituta, como dizem, no que isso a desqualifica? E se a juíza valente era mesmo “uma pessoa complicada”, como a define a moral mediana dos seguidores de detratores, no que isso compromete sua bravura? Os difamadores merecem o capitão Nascimento, que combate milícias e máfias sem complicar ainda mais nossas aflições.

*Jornalista